Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Filme 'Ninguém Sai Vivo' leva às telas a brutalidade do sistema manicomial retratada no best-seller 'Holocausto Brasileiro'

Viviane Monteiro, Arlindo Lopes e Fernanda Marques em cena do filme 'Ninguém Sai Vivo Daqui', de André Ristum | Foto: Marina de Almeida Prado/Divulgação

Aposta de bons augúrios para o cinema autoral brasileiro seguir discutindo temas urgentes em 2024, "Ninguém Sai Vivo Daqui" surpreendeu o público de Tallinn, na Estônia, durante o Black Nights Film Festival, em novembro, assim como chocou plateias no Festival de Brasília, no início deste mês, ao retratar um histórico de crimes no ambiente da Saúde.

Realizador de "Meu País" (2011), André Ristum renova suas ferramentas narrativas e confirma sua grife como diretor autor ao abordar o genocídio que ocorreu no maior hospício do país, o Centro Psiquiátrico Hospitalar de Barbacena, em Minas Gerais, de 1903 até meados dos anos 1980. A base do filme é a literatura: as páginas de "Holocausto Brasileiro", romance-reportagem best-seller de Daniela Arbex, ganham vida na tela, em preto e branco.

"Inspirado pelo cinema que me formou, como o de Bertolucci, tento criar uma estética em função do que narro para retratar o nível de desumanidade absurdo que se abateu naquele universo retratado por Daniela, em seu livro, e entender a situação de pessoas que não tinham direito a uma comunicabilidade com o mundo exterior", explica Ristum, que já havia abordado a situação dos internos de Barbacena na série "Colônia", hoje na grade do Globoplay. "Tento atravessar um espaço em que pessoas entravam sãs, sob alegação de loucura, e saíam de lá doentes".


 

'Paternidade, dilemas familiares e lucidez sempre marcaram meu cinema'

O diretor André Ristum com Fernanda Marques | Foto: Marina de Almeida Prado/Divulgação

Assistente de Marco Bellocchio em "O Traidor" (2019), Ristum tem em seu currículo pérolas como "De Glauber Para Jirges" (2005) e "14 Bis" (2006). "A questão da paternidade, dilemas da vida familiar e a questão da lucidez sempre marcam meu cinema", diz o cineasta.

De prosa com livro de Arbex, Ristum recria a barbárie cometida no Centro Hospitalar de MG, que recebia diariamente, além de pacientes com diagnóstico de doença mental, homossexuais, garotas de programa, epiléticos, mães solteiras, mulheres engravidadas pelos patrões, moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento, mendigos, alcoólatras, melancólicos, tímidos e todo tipo de gente considerada fora dos padrões sociais. Sob o consentimento do Estado, esse contingente de pacientes sofreu abusos cometidos por médicos e funcionários no "tratamento" de suas "enfermidades". O choque elétrico era a linguagem de ordem vigente. Apesar das denúncias feitas a partir da década de 1960, mais de 60 mil internos morreram e um número incontável de vidas foi marcado de maneira irreversível.

"Pensando sobre a minha busca de conhecimento sobre a História deste país, feita através das histórias que resolvi retratar em meus filmes, fica evidente que a busca pelo controle de corpos considerados desviantes é recorrente no Brasil. Isso vem desde o filme 'Tempo de Resistência', passando por 'O Outro Lado do Paraíso' e 'A Voz do Silêncio'. Essa questão do controle foi assim no passado e, infelizmente, segue ainda hoje, seja por razões políticas, pessoais ou de exclusão social. Desde os tempos antigos os ditos 'indesejáveis sociais' - indivíduos classificadas assim sob qualquer aspecto - foram violados, segregados, excluídos, estigmatizados e muitas vezes privados de qualquer tratamento humanitário", explica Ristum.

Em "Ninguém Sai Vivo Daqui", ele dialoga com a pesquisa jornalística (e literária) de Daniela Arbex a partir do drama de Elisa, personagem que arranca uma atuação estonteante da atriz Fernanda Marques. A jovem é internada em Barbacena por seu pai após engravidar de seu namorado, vítima, como tantos outros, de uma internação injustificada. O caso flagra ranços do machismo estrutural brasileiro. No elenco do longa, Augusto Madeira, Andréia Horta e Rejane Faria também têm personagens marcantes, à luz da fotografia P&B de Hélcio Nagamine.

"O livro 'Holocausto Brasileiro', no trabalho investigativo e na escrita da Daniela, realizados com um olhar tão humano, colocou luz sobre um tema totalmente esquecido da nossa História, que é, ainda hoje, muito sensível. Ela ofereceu um nível de detalhamento de como funcionou o sistema manicomial no Brasil e ajudou a expandir o conhecimento dos leitores, de forma a trazer o debate com mais força pros dias de hoje", diz Ristum. "O livro e, a partir de agora, o filme, deixam bem evidentes a urgência e atualidade de discutir a loucura no Brasil e debater todo tipo de violência contra o ser humano. O livro denuncia violações gravíssimas que ainda estão presentes no Brasil. Nos últimos anos a política de saúde mental no país andou pra trás, portanto é fundamental que obras como 'Holocausto Brasileiro' sigam existindo para que a sociedade possa discutir questões tão relevantes, criando um novo olhar para temas essenciais como este".

Elogiado em telas europeias, a partir da boa acolhida em Tallinn, "Ninguém Sai Vivo Daqui" deu ao diretor a oportunidade de mergulhar nas raízes históricas da exclusão em nossas terras.

"Ao aprofundar a pesquisa sobre os acontecimentos no Hospital Psiquiátrico de Barbacena, eu pude ver um país onde um patriarcado opressor ditou e dita as regras até hoje, de acordo com interesses às vezes muito individuais e personalistas", diz Ristum. "O entendimento de que devemos seguir lutando, cada vez mais, para desconstruir esse padrão de comportamento talvez tenha sido o aprendizado mais importante que a realização deste filme me trouxe, ao pensar o Brasil".

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