Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Para Scorsese, com amor

Cassino | Foto: Divulgação

Com cerca de US$ 150 milhões nas bilheterias, "Assassinos da Lua das Flores" se mantém na dianteira nas apostas acerca de potenciais indicações ao Oscar de 2024, consagrando (uma vez mais) Martin Scorsese como potencial concorrente à estatueta de Hollywood, confirmando sua habilidade de lotar salas, com seis décadas de cinema no currículo.

Oscarizado em 2007 por "Os Infiltrados", laureado com a Palma de Ouro de Cannes por "Taxi Driver" (1976), laureado com o troféu de Melhor Direção do Festival de Veneza de 1990 por "Os Bons Companheiros", o diretor de 81 anos não para de produzir e já tem um filme novo para rodar. "The Wager: A Tale of Shipwreck, Mutiny, and Murder" é um épico náutico que se passa na América do Sul em 1740, tendo como protagonista um de seus musos: Leonardo DiCaprio. Os dois fizeram seis filmes juntos. Robert De Niro, que atua com DiCaprio no já citado "Killers of The Flowers Moon", fez mais: foi dirigido por Marty (apelido do realizador) dez vezes. Um dos títulos mais brilhantes dessa parceria deles é "O Rei da Comédia" (1983) que será exibido no Estação NET Botafogo nesta quinta, às 14h, na abertura da mostra Scorseses.

"A última vez em que estive com Jerry Lewis, com quem filmei 'O Rei da Comédia', em 1983, ele já estava com 57 anos, e me disse uma coisa que bateu forte em mim: 'Se você estiver fazendo um filme, e perceber que o tempo não está bom, algo está errado. Pare, respire, repense'. No vocabulário do Jerry, 'tempo ruim' significava não sentir prazer, não ter foco. É preciso ter foco no que a gente espera contar ao pisar num set", disse Scorsese, no Festival de Marrakech, em 2018, citando o longa com De Niro e Lewis que o Estação projeta de novo neste sábado, 21h40.

É uma chance rara de ver um filmaço desses na telona. Ainda nesta sexta, na mesma sala do Estação, tem "Alice Não Mora Mais Aqui" (que rendeu o Oscar de Melhor Atriz a Ellen Burstyn, em 1976, às 16h20; "Touro Indomável" (que oscarizou De Niro em 1981), às 18h30; e o supracitado "Os Bons Companheiros" (pelo qual Joe Pesci levou a estatueta hollywoodiana de Melhor Direção, em 1991), às 21h. Essa obrigatória retrospectiva segue até o dia 6 de dezembro. Sexta, às 14h, vai ter sessão do longa que jogou Scorsese no radar da crítica, em 1974, quando foi projetado na Quinzena de Cineastas de Cannes: "Mean Streets", traduzido como "Caminhos Perigosos" no Brasil. Esse cult, que abriu a conexão dele com De Niro, voltou à Quinzena em 2018, ano em que o diretor recebeu a láurea honorária Carroça de Ouro.

"De Niro e eu nos conhecemos desde os 16 anos e, agora, estamos numa idade em que a gente se liga para falar de dores novas que estamos sentindo ou de algum cansaço que não fazia parte de nossas rotinas quando Nova York era um mar de criatividade aberto a nós", disse o mítico cineasta em uma palestra em Marrakech, onde foi homenagear seu velho amigo.

De Niro e ele brilharam até na Netflix, onde Scorsese lançou "O Irlandês", com Al Pacino, Pesci e Harvey Keitel em 2019. Entre as pedidas obrigatórias da seleção do Estação, destaca-se um de seus cults menos citados: "Vivendo no Limite" (1999), com um devastador Nicolas Cage no papel de um paramédico nas ruas de NY.

"Há cifras muito altas em torno de 'Homem-Aranha', 'Batman' e esses super-heróis todos, mas filmes ousados de diferentes países, feitos com pouco dinheiro, andam sem espaço. Festivais como este devem ajudar essas produções a encontrar seu público", disse Scorsese em Marrakech, em 2018, para uma plateia lotada, num papo triangulado por uma dupla de diretores do Marrocos (Laïla Marrakchi e Faouzi Bensaïdi), que durou quase duas horas, com direito a trechos de cults como "Cassino" (1995) e "A Última Tentação de Cristo" (1988).

Ambos estarão na mostra "Scorseses" do Estação. O longa com Willem Dafoe no papel de Jesus tem sessão na sexta, às 16h, e a superprodução no qual De Niro reina sobre a jogatina de Las Vegas passa no sábado, às 14h20. Os dois longas guardam inquietações estéticas do diretor. "Eu era um menino com asma que não podia correr nem rir muito alto. Numa casa sem livros, meus pais me levaram ao cinema, para ver clássicos da Hollywood de 1944, 45. A chegada de uma pequenina televisão em nossa casa mudou as coisas, pois havia um canal de TV só para italianos em Nova York, no qual eu vi obras-primas da Itália como 'Paisà'. Ali, a noção de 'filme estrangeiro' passou a ser bem próxima para mim", disse o cineasta. "Aprendi com o tempo que é necessário correr atrás dos atores, entender os espaços deles".

Cannes viveu uma convulsão este ano com "Assassinos da Lua das Flores", numa sessão em dia de chuva que parou a Croisette. "A gente estava aqui em 1976, quando tudo aconteceu", dizia De Niro, lembrando da conquista da Palma de Ouro no mesmo festival que lhe concedeu a láurea de Melhor Direção em 1986 por "Depois de Horas", comédia que o Estação exibe nesta sexta, às 23h59.

Seu produtor e protagonista, Griffin Dunne, rasgou elogios a Scorsese no Festival de San Sebastián, em setembro, onde esteve com "Ex-Husbands". "Sinto que 'After Hours' foi o filme que abriu as portas do mundo para mim. Na época em que fez a sua primeira exição mundial, em Cannes, em 1985, tava rolando o boato de uma ameaça de bombas e os artistas americanos todos cancelaram sua ida. Stallone e Schwarzenneger não viajavam, mas eu, que produzi o filme, sim, o que fez jornais como o 'Le Monde' me chamarem de 'O Ator Mais Corajoso da América'. Por outro lado, na minha relação com a comédia, o filme acabou me associando a um arquétipo do atrapalhado em situação de risco".

Na Croisette quem se rasgou em mimos para Scorsese foi DiCaprio, estendendo os afagos a De Niro, que desponta como potencial concorrente ao Oscar de Melhor Coadjuvante por seu trabalho em "Assassinos da Lua das Flores". "Eu cresci vendo o que esses dois, Martin e De Niro, fizeram ao longo das últimas décadas, desde os anos 1970, e eles serviram com uma espécie de modelo pra mim. Foram o template para toda a geração de que eu faço parte", disse DiCaprio a Cannes, numa coletiva de imprensa tensa, que atrasou cerca de 30 minutos. "A ferocidade que os dois imprimem na tela é algo impressionante".

Dois marcos da relação de Scorsese com o documentário serão exibidos neste fim de semana. Na sexta, às 19h15, tem "The Last Waltz" (1978), aqui chamado "O Último Concerto de Rock", sobre o conjunto The Band. No sábado, às 1740, rola "Italianamerican" (1989), sobre as raízes sicilianas do cineasta, na vida com sua mãe e seu pai.

"Eu já passei momentos difíceis. Cresci num bairro duro, violento, com muita gente ruim e muita gente boa. Eu não sei o que eu aprendi com os filmes que fiz, mas tive a chance de dominar uma lição: fracassar é ok, desde que você se levante depois", disse Scorsese, em sua passagem por Cannes. "Já vivi 'tempos ruins' filmando, mas me dei conta de que eu faço cinema para compartilhar com as pessoas referências que aprendi com o cinema e mudaram a minha vida... uma vida que começou pobre, asmática, numa casa sem livros. A falta de livros e a asma me levaram aos filmes. É a cultura da imagem. Nos anos 1970, essa cultura produziu diretores que tinham medo de ver seus projetos extintos pela vaidade de um ator. Nos anos 1980, uma frase de um crítico poderia acabar com um filme. Hoje o problema é o fato de as salas de cinema estarem sumindo".

Um dos maiores entusiastas de Scorsese na indústria é Francis Ford Coppola que, depois de um longo hiato das telonas, desde a estreia de "Virgínia" ("Twixt"), em 2011, volta ao circuito este ano com "Megalópolis", protagonizado por Adam Driver. "Ele é o maior cineasta vivo", disse o diretor de "O Poderoso Chefão", que deve lançar seu longa em maio, em Cannes.

No Brasil, "Assassino da Lua das Flores" já vendeu cerca de 430 mil ingressos. O Estação NET Gávea e o Estação NET Rio estão projetando o longa em sessões concorridas. Celebrizado nas veredas da violência por meio de tramas de máfia, centradas na sociologia de uma América suburbana, Scorsese se envereda, aqui, por códigos do western não pelas malhas mais populares do gênero (duelos, cavalgadas, desbravamento do Oeste), mas por um veio antropológico. Superprodução de US$ 200 milhões, o mesmerizante novo longa do realizador de "Cabo do Medo" (indicado ao Urso de Ouro da Berlinale 1992) é uma adaptação ousadíssima, de três horas e 26 minutos, do livro de não-ficção "Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI", do jornalista americano David Grann. É um tratado histórico contra o racismo americano, que adotou os povos originários de seu território como objeto de intolerância, entre os quais a população indígena Osage. DiCaprio e De Niro se complementam divinamente em cena.

Ganhador do Oscar por "A Baleia", Brendan Fraser tem uma participação luminosa no terço final de "Assassinos da Lua das Flores", um projeto da AppleTV que teve uma exibição em tela grande em maio, no Festival de Cannes, e chega agora ao circuito exibidor. A montagem de Thelma Schoonmaker (sempre exuberante em sua esgrima com a mesa de edição) equilibra tensão, conspirações políticas, melodrama e confronto de culturas. É nesse último aspecto que Lily Rose Mary Gladstone - atriz descendente dos indígenas Nimíipuu e Pikunis - se destaca em cena, e se candidata ao Oscar.

Numa mistura de melancolia e resiliência, a personagem dela ilumina a trama fotografada por Rodrigo Prieto. Proustiano, Scorsese busca um tempo perdido quando os Osage ficam ricos com a descoberta de combustível fóssil (petróleo) em suas terras, no início do século XX, logo após a I Guerra. Nos anos 1920, em Oklahoma, eles passam a ser manipulados por um senhor feudal fora de época, chamado de "Rei", o poderoso William Hale (De Niro, em magistral atuação). Precisando de alguém de confiança para garantir que nenhum Osage passe do ponto, matando-os se preciso for, Hale dá emprego de motorista (e de faz-tudo) para seu sobrinho, Ernest, vivido por um Leonardo DiCaprio maduro, com ares de Burt Lancaster. No flerte com os indígenas que deve vigiar, eliminando alguns, Ernest se casa com uma herdeira dessa população, Mollie, papel de Gladstone. Mollie ficou rica, mas padece de diabetes, sem conseguir dar conta do mal-estar que sente. Padece também da dor diante das mortes de seus conterrâneos. O amor de Ernest é um alívio pra ela, mas será, mais adiante, um caos. É o que se passa quando ela percebe que seu companheiro está ligado a crimes de ódio. As confusões de Ernest acabam num tribunal, num julgamento em que todas as imposturas dos EUA entram no banco dos réus.

Este ano, o Estação, que realiza Scorseses, deslumbrou olhares com retrospectivas de Federico Fellini (1920-1993), Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) e Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), além de exibir uma série de clássicos nacionais em 35mm.

 

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