Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'Homem Onça', drama político de Vinicius Reis que recria com espanto a Era das Privatizações

Chico Diaz encarna a tragédia dos que acreditavam numa utopia de Brasil | Foto: Divulgação

É difícil não pensar em cults como "O Príncipe" (2002), de Ugo Giorgetti, e "O Bom Buguês" (1983), de Oswaldo Caldeira, diante das cenas mais catárticas de "Homem Onça", que será exibido nesta quarta-feira, às 19h, no 12° Festival Internacional de Cinema Agroecológico. O longa chega à telona mais bonita do Rio de Janeiro endossado por elogios internacionais.

Lançado no Arthouse Asia Film Festival, em Calcutá, na Índia, em fevereiro, o terceiro longa-metragem de ficção de Vinícius Reis, revelado com o .doc "A Cobra Fumou" (2002) se impõe como uma precisa crônica sobre a era das privatizações, na segunda metade dos anos 1990. Ela passou ainda na seleção da mostra de Santiago Del Estero, na Argentina.

Sua angustiante narrativa fez barulho em Gramado, na mais popular das mostras competitivas de nosso audiovisual. Saiu de lá com um (merecido) Kikito de melhor atriz coadjuvante, dado a Bianca Byngton, por uma atuação em estado de graça em parceria com Chico Diaz - este, a alma do projeto, uma alma luminosa.

Diaz encarna a tragédia dos que acreditavam numa utopia de Brasil e foram traídos por interesses financeiros em meio a desgovernos do país, como se viu nos longas seminais de Giorgetti e Caldeira citados acima. Ao lado deles, o novo trabalho de Vinícius Reis se junta a uma tradição curta, mas cheia de som e de fúria, de ficções políticas brasileiras, que tem em "Terra em Transe" (1967) seu farol mais luminoso. Mas, assim como se pensa em títulos brasileiros do passado, pensa-se em Ken Loach, holofote vivo do marxismo no audiovisual.

Não se fala no termo "luta de classes" em "Homem Onça", mas o assunto está lá, loachiano, à espreita... qual o felino do título, escolhido em referência a uma peculiaridade de Pedro (o papel de Diaz), em sua infância no interior, em meio ao verde. Da mesma forma que o Bom Selvagem de Rousseau, Pedro fez da Natureza o analgésico (físico e moral) para a moléstia da desatenção que castiga o mundo de concreto armado à nossa volta. Um mundo que se mostra claustrofóbico em 1997, em meio a um processo em que se privatizam empresas públicas. Entre elas está a Gás do Brasil, onde Pedro gerencia uma área de projetos ambientais. Área que vai passar pela foice chamada downsizing. Pescoços rolam em prol de um enxugamento monetário, desumanizando um ambiente profissional onde amizades descambam para a hostilidade. Amigos de outrora, como Dantas (Emílio de Mello, impecável), vão trombar com a atitude de Pedro, que se vê atônito diante das exigências de seus patrões, dando a seus colegas uma metonímia de desastre: "Passa no RH". O pé de café em seu escritório é um souvenir de um tempo em que as hordas bárbaras do neoliberalismo ainda não haviam conspurcado seu Éden de amizades.

Reis é mestre em retratar traumas de perdas súbitas na vertente ficcionista de seu cinema. É o que se vê no estonteante "Praça Saens Pena" (2009) - também com Chico - e em "Noite de Reis" (2012), que rendeu o troféu Candango de melhor ator a Enrique Diaz. Em ambos, a harmonia entre grupos é subitamente trovejada pelo inusitado. Sempre atento aos conflitos de classe, o realizador passa pela linhagem do já citado cinema marxista conversando com o Loach de "Você Não Estava Aqui" (2019) e com a estética antiliberalista de Stéphane Brizé ("Em Guerra") mas não fica nele. É de sua natureza valorizar mais a dimensão existencialista do que a verve sociológica. O problema de Pedro não está no bolso e, sim, no peito. Um peito congestionado diante das bestialidades do sistema. Vemos essa congestão pelos olhos trágicos de duas mulheres: sua primeira esposa, Sônia (Sílvia Buarque, em sua mais inspirada atuação), e Lola (Byngton), figura de exuberância afetiva com quem ele vai viver numa casinha no mato.

O gradual adoecimento (ou melhor, "enojamento") de Pedro arranca de Diaz um desempenho magistral, num longa que se destaca ainda pela engenharia de som de Waldir Xavier. De seu lado documental, Reis trouxe um cuidado em nunca tratar o real com desmesura formal.

 

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