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Chagas existencialistas

Em 'O Pequeno Corpo' uma mãe empreende longa viagem para trazer sua filha natimorta à vida | Foto: Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Sempre se pode esperar esplendor da Itália nas telas, vide o recente "Comandante", de Edoardo De Angelis, que hoje lota salas exibidoras por lá e brilhou aqui na Mostra de São Paulo. Só que existem outras joias egressas da pátria de Fellini. Num horizonte de forte reconhecimento internacional para o cinema italiano, com o êxito de "Io Capitano" (de Matteo Garrone) e de "Il Sol Dell'Avvenire" (de Nanni Moretti), a jovem diretora Laura Samani, nascida em Trieste há 33 anos, é quem mais vem chamando a atenção dos olheiros das principais mostras de cinema do mundo. Em julho de 2021, ela brilhou na Semana da Crítica de Cannes com uma joia que faz jus à tradição de glória do audiovisual italiano: "O Pequeno Corpo" ("Piccolo Corpo"), que estreia no Brasil neste fim de semana.

"Tento não ser refém da tradição e buscar uma mirada particular sobre os afetos", disse Laura, em entrevista por telefone ao Correio da Manhã, pouco antes de integrar o júri do Festival de Locarno, na Suíça.

É difícil não pensar em Roberto Rossellini… e, sobretudo, no Ermanno Olmi de "A Árvore dos Tamancos" (Palma de Ouro de 1978) diante dos planos idealizados por Laura, investindo no realismo para (paradoxalmente) dar sustância a uma fábula.

"Temos uma realidade de produção muito variada na Itália hoje, uma vez que não existe um status quo de filmagem organizado entre os diretores, com cada um a seguir seu próprio caminho, livremente, sem o pertencimento a uma noção de grupo. Mas existe, sim, o peso da égide neorrealista sobre nós, uma cobrança em relação à grandiosidade do eu fizemos no passado", disse Laura, lembrando do diretor de "Accatone - Desajuste Social" (1961) entre suas referências, na construção de uma linguagem própria, de afirmação das lutas identitárias femininas. "Pasolini é muito importante para que a reconstituição do passado que faço não fique presa no tempo histórico, criando uma analogia com o que nós vivemos hoje. Tem algo dos irmãos Grimm, só que à luz natural".

Seu filme viaja no Tempo, até a Itália de 1900. Lá, o bebê da jovem Agata (Celeste Cescutti) é nascido morto e condenado ao Limbo, sem receber as unções cristãs. Agata ouve falar de um lugar nas montanhas onde crianças natimortas podem ser trazidas de volta à vida com apenas um sopro, para batizá-los e salvar sua alma. Ela empreende uma viagem com o pequeno corpo de sua filha escondido em uma caixa e encontra Linx, um menino solitário que se oferece para ajudá-la. Eles partem para uma aventura que permitirá a ambos se aproximarem de um milagre.

"Não é um filme religioso, sobre práticas místicas. O milagre que me interessa aqui não é a manifestação do Sagrado e, sim, a ideia de Bem, que possa ser comum a homens e mulheres, ainda que eu tente quebrar com o ranço machista histórico de patriarcado da Itália", disse Laura. "Existe aqui um lugar para o extraordinário"

No roteiro escrito pela diretora, em parceria com Marco Borromei e Elisa Dondi, temos um painel dos conflitos sociais de uma Europa que viria a vivenciar duas grandes guerras. Fotografado por Mitja Licen, o longa-metragem é uma delicada cartografia de afetos fraturados pela pobreza e pela fé, numa ode ao poder da maternidade.

A partir da década de 1980, o cinema que serviu de berço para Laura viveu uma espécie de Idade Média midiática, em que Silvio Berlusconi, no comando parlamentar daquele país, sucateou a produção audiovisual local, a fim de valorizar mais a TV do que a telona. Uma terra de gigantes (Rossellini, De Sica, os já citados Fellini e Pasolini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini, Liliana Cavani), próspera na seara dos filmes de gênero seja no terror (com o giallo de Dario Argento), no faroeste (com as macarronadas de Sergio Leone, Tonino Valerii e Sergio Corbucci) e nos épicos de gladiador (o Peplum), minguou por um bom tempo, de 1984 a 2008, vendo suas fontes de fomento à produção cinematográfica escassearem. Até campeões de bilheteria como Carlo Pedersoli e Mario Girotti (conhecidos como Bud Spencer e Terence Hill) deixaram de fazer os longas da franquia "Trinity", sob a guilhotina de Berlusconi, restando visibilidade a poucos cineastas. Giuseppe Tornatore (com "Cinema Paradiso") e Roberto Benigni (com "A Vida É Bela") souberam bem flertar com as receitas da Academia de Artes e Ciências de Hollywood.

"Pertenço a uma nação com uma polifonia criativa", disse Laura. "O filme que fiz é uma forma de trilharmos um novo caminho", justifica a realizadora italiana.

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