Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O modo francês de amar

Uma mulher sem amarras se relaciona com um homem que se sente culpado por desejá-la | Foto: Divulgação

Foi um francês, o dramaturgo Jean Anouilh (1910-1987), autor de "O Viajante Sem Bagagem", quem cantou a pedra: "Existe o amor, é claro, e existe a vida, sua inimiga". Essa percepção foi combatida pelo cinema de muitas formas, sobretudo pelo filão apelidado graciosamente de RomCom, a comédia romântica, que teve "Uma Linda Mulher" (1990) e "Sintonia de Amor" (1993) como ápices - em Hollywood, pelo menos. Bem antes disso, o Brasil cravou "Todas as Mulheres do Mundo" (1966), de Domingos Oliveira, e a França teve François Truffaut, e seu monumental "A Mulher do Lado" (1981).

É de lá mesmo, de terras francesas, que chega em nossas telas, com um ano de atraso - e isso graças ao empenho do Festival Varilux -, um dos mais brilhantes exemplares das narrativas sobre o querer feitas para o audiovisual dos dias atuais: "Crônica de uma Relação Passageira". Tem sessão dela nesta terça, às 14h, no Estação NET Botafogo, e na quinta, também às 14h, no Estação NET Gávea.

No sapatinho, sem fazer alarde, o trabalho mais recente do cineasta Emmanuel Mouret virou cult no âmbito dos afetos. Nasceu na mostra Cannes Première de 2022 e passou por aqui na Mostra de São Paulo do ano passado. "Chronique d'une Liaison Passagère" (seu título original) vendeu cerca de 320 mil ingressos em solo francês, cerca de um ano e meio após a consagração de Mouret com "Les Choses Qu'On Dit, Les Choses Qu'On Fait".

A desenvoltura deste realizador no terreno da RomCom é surpreendente, a se julgar pelo estilo de recorrente azedume de seus filmes. O que ele arranca de Sandrine Kiberlain e Vincent Macaigne evoca Meg Ryan e Tom Hanks em longas como "Mensagem Pra Você" (1998).

"A dinâmica deste filme é livre, operando com lima mulher que se reconhece autônoma, sem amarras, e um homem que se sente culpado por deseja-la", disse Sandrine ao Correio da Manhã em Paris, durante o fórum Rendez-vous Avec Le Cinéma Français. "O que me atraiu para esse projeto foi a possibilidade de construir uma figura feminina que, apesar de conhecer o medo da solidão, escolhe viver".

Macaigne virou seu ator assinatura. Barbudinho, taquicárdico, sem prumo em suas incertezas e falador, ele encarna o obstetra Simón, a quem transforma num ímã de gargalhadas. A gente ri de nervoso com as inseguranças dele ao conjugar o verbo "eu quero". Na trama, ele, casado e pai, passa a arrastar um caminhão por uma mulher empoderada, mãe solteira e cheia de certezas chamada Charlotte, interpretada pela campeã de bilheteria Kiberlain. Durante a sessão do longa em Cannes, o Palais des Festivals vinha abaixo de rir com os dois. O título - "Chronique d'Une Liaison Passagère" - traduz um acordo que os dois travam para transarem sem culpa: vai ser passageiro. Deveria. Mas, não é. E a delicadeza com que Mouret, à direção, explora o modo nada barthesiano com que o discurso amoroso se fragmenta é envolvente.

"Existem diretores cinéfilos que buscam reproduzir na tela aquilo que eles viram de melhor, e há cineastas como eu, que exploram a liberdade, que buscam a surpresa, ainda que sob a luz do que viram antes", disse Mouret ao Correio, também no Rendez-vous. "Existe um gênero, o 'filme de amor', que já passou por Woody Allen, por Truffaut, mas existe algo além. Existe a moral que nos prende a uma forma de querer".

Em 2021, ele reinou nas indicações ao César. O Oscar à francesa é entregue desde 1976 pela Académie des Arts et Techniques du Cinéma, nos mesmos moldes da Academia de Hollywood. Trata-se de um troféu de bronze estimado em cerca de € 1,5 mil, batizado com o nome de seu escultor, César Baldaccini (1921-1998), artesão do Nouveau Réalisme europeu. Mouret brigou por esse troféu em várias frentes ao se apoiar na tese de que a paixão é um analgésico para as dores do mundo, expressa no drama "Les Choses Qu'On Dit, Les Choses Qu'On Fait". Sua narrativa mostra o encontro inesperado entre dois jovens que se apaixonam, mesmo ela já estando envolvida com um outro homem, de quem está grávida.

"Existem códigos que levamos para o dia a dia de nossas relações que nasceram com o cinema, em tela grande, como troca simbólica. Mas nós repetimos esses elementos simbólicos na vida real A maneira como o cinema afetou a realidade consciente que vivemos me faz pensar que não há apenas sexo envolvido na aproximação entre duas pessoas, há um sentimento de pertença, existe um carinho", diz o cineasta. "A maneira que eu tenho para expressar essa relação é pelo lirismo, que pode ser triste, sem perder seu vigor".

O Varilux segue até 22 de novembro em cerca de 50 cidades do Brasil, espalhando-se por várias telas do Rio.

 

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