'Meu nome é Gal': A biografia de um Brasil em guerra
No sonho de firmar uma carreira sob os solares holofotes de uma MPB do tempo dos festivais da canção, Gal Costa mira o lado estelar de sua paixão, a música, mas é dragada para uma zona penumbrosa, de cor plúmbea, da mordaça que o Golpe de 64 e o AI-5 institucionalizaram no país.
Sessão alguma do Festival do Rio 2023 foi mais celebrativa do que a projeção de "Meu Nome É Gal", num inchado Odeon, no último dia 7, que serviu como parto simbólico para o nascimento de um biopic dionisíaco, avesso às fórmulas laudatórias do filão.
Tanto é que uma estrofe belicosa do repertório das composições de alerta do Brasil dos anos de chumbo é a metonímia mais do que perfeita para a epistemologia proposta por suas diretoras, Dandara Ferreira e Lô Politi, ao encarar um duplo discurso do método.
O método de um filão de gênero - o drama biográfico - e o método da História, sob o viés das ciências políticas. A tal estrofe: "Atenção ao dobrar uma esquina / Uma alegria, atenção menina / Você vem, quantos anos você tem? / Atenção, precisa ter olhos firmes / Pra este sol, para esta escuridão".
Em sua revoada de Ícaro, no sonho firmar uma carreira sob os solares holofotes de uma MPB do tempo dos festivais da canção, Gal Costa mira o lado estelar de sua paixão, a música, mas é dragada para uma zona penumbrosa, de cor plúmbea, da mordaça que o Golpe de 64 e o AI-5 institucionalizaram no país. Nesse esparo de tensão, o filme, delimitado de 1966 a 1971, opera não com um viés de micareta, para celebrar um mito, mas, sim, num procedimento quase psicanalítico (bastante ousado) de enxergar a pessoa que reside na grife de estrela. "Bohemian Rhapsody", o estonteante fenômeno de bilheteria com Rami Malek (que custou US$ 52 milhões e faturou US$ 910 milhões), foi por aí também, e brilhou... e ficou. Pode se repetir o mesmo com "Meu Nome É Gal", cuja montagem domina o fluxo do passado com destreza.
Este é "O" ano do biopic, jargão industrial audiovisual para "épico biográfico". É o ano do monumento "Oppenheimer, que custou US$ 100 milhões e arrecadou US$ 939 milhões, além da fama de ser um dos maiores filmes do milênio. Christopher Nolan contou a jornada de luta contra o Mal (o mal interno e o mal capitalista) do físico J. Robert Oppenheimer, que inventou a bomba atômica, rastreando suas inquietudes e incertezas, sem se preocupar em edificar uma linha heroica em sua trajetória. O mesmo se passa com a Gal de Lô e Dandara, defendida a lanças de São Jorge por uma Sophie Charlotte pombajírica que traz num olho o dragão da maldade e, no outro, o santo guerreiro. Não que as diretoras suponham (ou defendam), de modo redutor, que Gal vivesse em guerra. Quem estava em guerra no tempo redescoberto pelo filme é o Brasil. É sobre essa instituição, um país, que o filme fala. Um país que submeteu mulheres a opressões simbólicas e físicas. A voz de Gal entra em cena como um brado de ruptura, que ecoa com mais força ao esbarrar nos paredões no governo fardado pós-1964.
O furacão Charlotte puxa em sua ventania uma direção nada formalista de Dandara e de Lô, que desenha seu mapa das instabilidades afetivas do Brasil sob a fotografia mais madura que Pedro Sotero (de "Aquarius") já fez, num trabalho de luz que vem em maturação plena depois de "Vermelho Sol". Dos satélites que cruzam o caminho de Gal, a presença atômica de George Sauma como Wally Salomão é uma explosão nuclear de carisma que merecia um filme à parte.
