Chega de saudade de Tenório Jr

Animação investigativa de Fernando Trueba e Javier Mariscal com depoimentos de Gil, Chico e Caetano abre a edição 2023 do Festival do Rio

Por Rodrigo Fonseca (Especial para o Correio da Manhã)

Talentoso pianista desaparecido na Argentina durante a ditadura, Tenório Jr é tema da animação 'Atiraram no Pianista', que abre o Festival do Rio nesta quinta-feira

Está à venda em livrarias de toda a Espanha um quadrinho que narra um dos raros momentos em que a alegria da bossa nova desafinou: "Dispararon Al Pianista" é o nome do álbum que dá tinta, papel e a estampa de qualidade do mercado editorial europeu a uma história triste que seus autores, o cineasta Fernando Trueba e o designer Javier Mariscal, confeccionaram ainda em forma de filme.

E que filme! Um filme que saiu ovacionado da maratona cinematográfica de San Sebastián, no dia 22 de setembro, e que, nesta quinta-feira, chega à telona do Odeon a fim de dar a largada para o Festival do Rio 2023. Seu personagem central: o ás do piano Tenório Jr (1941-1976). A parte doída de sua história, na virada dos anos 1970, em Buenos Aires, ele saiu para comprar um sanduíche, cigarros & afins e... sumiu, ou... foi sumido.

Muita gente boa da MPB conta suas versões sobre o desaparecimento, a ausência e o talento dele, incluindo Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Donato (que nos deixou faz pouco). Cada uma dessas celebridades aparece em cena versões animadas, mas com suas próprias vozes.

"Num mundo em que era chique sair de gravata, a bossa nova inaugurou uma maneira de cantar bem diferente e um jeito de tocar distinto da tradição. O mundo que cantava Frank Sinatra também tinha Pixinguinha e descobriu o Brasil com Tom Jobim e outros grandes nomes, sendo que Tenório Jr estava ao piano", disse Trueba a San Sebastián.

Grandes diretores brasileiros já abriram o Festival do Rio no passado, como Daniel Filho, Bruno Barreto, Miguel Faria Jr., Arnaldo Jabor (1940-2022), Breno Silveira (1964-2022), mas, este ano, a carioquice que inaugura a maratona cinéfila carioca tem temperos espanhóis, embora cada um dos personagens tenha seu desenho trabalhado pelo mais famoso quadrinista do país na atualidade: o niteroiense Marcello Quintanilha (de "Tungstênio"). Residente em Barcelona, ele ganhou prêmios em toda a Europa com o gibi "Escuta, Formosa Márcia" e participa da criação do longa de Trueba e Mariscal, com quem trabalhou também na animação "Chico y Rita", um dos concorrentes ao Oscar em 2012.

"O realismo não é o meu forte, que deformo o real em estratégias gráficas variadas, mas, o Marcello domina bem esse código", disse Mariscal ao Correio da Manhã, em San Sebastián. "É uma grande ajuda fazer um filme sobre um país diferente do seu e poder consultar um artista local sobre como se bebe cerveja na praia de Ipanema em vez de recorrer às respostas do Google. O mais interessante é que esse nosso parceiro, o Marcello, tem o diferencial de ser um autor de HQs sobre pessoas pobres de periferia que buscam sobreviver. Não é um cronista de um mundo branco de classe média. Na produção deste filme sobre Tenório, ele desenhava os personagens de perfil e de frente, como se fazem nos retratos das fichas policiais, o que nos trazia diferentes perspectivas das figuras".

Oscarizado em 1994 com a estatueta da Academia de Hollywood de Melhor Filme Estrangeiro por "Belle Epoque", Trueba já filmou com astros americanos ("Quero Dizer Que Te Amo" tinha Daryl Hanna e Melanie Griffith) e fez documentários sobre a música latina, como "Calle 54" (2000) e "Milagre do Candeal" (2004), sobre a Bahia de Carlinhos Brown. Foi em terras baianas que ele soube de Tenório Jr. e ficou encantado com seu estilo. No filme sobre o músico, Jeff Goldblum dá voz a um jornalista que investiga o sumiço do instrumentista e Tony Ramos cede o gogó a João, espécie de guia da geografia brasileira e especialista em MPB.

"Não considerava uma opção interessante escalar um cineasta estrangeiro que se interessasse por Tenório Jr. como protagonista, para não soar enfadonho, nem burguês, o que me levou a optar pela figura de um repórter e escritor", disse Trueba. "No princípio, 'Atiraram no Pianista' ia ter uma coprodução brasileira, mas fomos prejudicados pelo corte às verbas da cultura no governo Bolsonaro. Acabamos filmando com o apoio da França e da Holanda". A primeira parte do filme é uma aula de música ao narrar a reportagem feita pelo jornalista estadunidense em busca do paradeiro de Tenório, ouvindo sua mulher, uma namorada e colegas ilustres, como Milton Nascimento, Toquinho e a assessora de imprensa Gilda Mattoso, além do poeta Ferreira Gullar (1930-2016). O autor de "Poema Sujo" narra um causo exótico envolvendo uma vidente. É espantosa a semelhança entre os desenhos animados de todas as personalidades do longa, cuja segunda parte, com mais tom de teoria conspiratória, passa-se na Argentina. Lá, conferimos dados beeeem concretos do potencial assassinato do músico.

"Encontramos uma entrevista inédita de Vinícius de Moraes durante a pesquisa em que ele demonstra, no olhar, seu desespero em relação ao que houve com Tenório", diz Trueba.

A partir de sexta, o Festival do Rio vai se espalhar por outras telas da cidade, iniciando sua Première Brasil, com 91 produções. Entre as atrações obrigatórias se destaca "Puan", comédia argentina de María Alché e Benjamín Naishtat, laureada em San Sebastián com os prêmios de Melhor Roteiro (escrito pelos cineastas) e Melhor Interpretação (Marcelo Subiotto).