Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Aos 72 anos, com 52 prêmios em uma carreira iniciada em 1974, entre os quais o Leão de Ouro dado a seu "Fausto", em 2011, Alexander Sokurov não acetou a censura a produções russas que se abateu sobre o audiovisual, como retaliação às ações de Vladimir Putin na guerra da Ucrânia e aproveitou seu status de antipatizante a todas as formas de totalitarismo pra deixar circular uma das experiências sensoriais de maior radicalismo de sua obra: "Skazka".
Em agosto de 2022, o longa-metragem concorreu ao Leopardo de Ouro do Festival de Locarno, na Suíça (onde foi premido, em 1987, por "A Voz Solitária do Homem"), com o título "Faitytale", cuja tradução literal, "Conto de Fadas", está sendo usada em suas exibições na 25ª edição do Festival do Rio, onde a produção virou um fenômeno no boca a boca popular. Tem mais duas sessões do filme na cidade, uma na quinta, às 14h45, no Estação NET Gávea 4 e outra no dia 15, às 21h45, no Estação NET Rio 5.
"Não existe 'era uma vez', nem existem elementos de animação, mas existe a recriação quase fabular de figuras políticas reais, com uma moral da História. Foi um garimpo de arquivos, no qual tudo o que você ouve vem de depoimentos reais colhidos em documentos e em registros fonográficos", afirmou Sokurov ao Correio da Manhã, em Locarno.
Sempre acompanhado de seu tradutor pessoal, Sokurov sabe que não o momento oportuno para um filme russo tentar a sorte. Porém, a potência do que ele criou transcende geopolíticas, ao resgatar imagens de Hitler, Winston Churchill e Stalin nua releitura mitológica, como se os três estivessem num Purgatório. "O momento pelo qual a Rússia passa hoje é duro. Durante o governo soviético, eu tive a honra de ser amigo de Andrei Tarkovski (diretor de "Nostalgia" e "Solaris") e dividi com ele o gosto de poder ver a vida por diferentes prismas, valorizando sua complexidade. O que se pode dizer de mais concreto sobre o governo de Putin é que ele é algo complexo. Muito do que se passa e território russo hoje já estava prenunciado nos escritos de Tolstói, está nas páginas de 'Guerra e Paz'. Mas falta memória", diz Sokurov.
Quando bateu seus olhos criteriosos na delirante alegoria de Sokurov com Stalin e Hitler a falar sobre Poder, à sombra de Cristo, o crítico suíço Giona A. Nazzaro, disse ter provado de uma sensação cinéfila única. "Estamos falando de um exercício de autor que vai deixar espectadores de cabelos em pé", disse Nazzaro, referindo-se a um processo transcendental de entendimento da Eternidade, do Divino e das bestialidades cometidas na II Guerra.
Hitler já havia sido retratado por Sokurov antes, em "Moloch" (1999), que ganhou o prêmio de Melhor Roteiro em Cannes. "Minha premissa em 'Conto de Fadas' era retratar figuras políticas proeminentes do século XX, num lugar fronteiriço à fantasia que fazemos delas. Napoleão Bonaparte matou milhares de pessoas em nome da França, invadiu países, desrespeitou os códigos legais de muitas sociedades. Ele se enquadra na concepção histórica do Mal, chegou a ser estudado como vilão. Mas, hoje, há quem o veja como herói. É esse relativismo que me interessa. Hitler aparece no meu filme como uma figura triste. Stalin aparece cansado, esperando saber quando a Morte vai chegar. É um reflexo da tortura eterna a partir da qual enquadro os dois", diz o cineasta.
O Festival do Rio segue até domingo (15).