Duas décadas de serviços prestados ao cinema de invenção, iniciadas com o curta "A Ordem dos Penitentes" (2002), estão em retrospectiva no Centro do Rio, na Caixa Cultural (Rua do Passeio, 38), numa mostra dedicada ao realizador cearense Petrus Cariry. Dedicado aos longas-metragens a partir de 2007, quando lançou "O Grão", ele desenvolveu uma forma poética de enquadrar o tempo e de analisar as mazelas de sua terra natal, seja em âmbito urbano ou rural - do mar ao asfalto. Longas como "Mãe e Filha" (2011) e "O Barco" (2018) deram-lhe prestígio internacional, em festivais como os de Havana, de Trieste e de Kerala. Esse tráfego dele pelas veredas da autoralidade estão em foco na programação da Caixa.
Nesta terça-feira (3), a mostra vai passar três filmes em sequência: "A Jangada de Welles" (2019), às 14h; "Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois" (2015), às 16h; e "A Praia do Fim do Mundo" (2021), às 18h. Na quarta-feira, dia 4, às 14h, o evento oferece uma aula sobre produção cinematográfica com a irmã do diretor, a produtora Bárbara Cariry, parceira essencial de sua obra.
No penúltimo dia da mostra, na quinta-feira, dia 5, às 14h, a atriz Silvia Buarque, estrela de filmes consagrados de Petrus e de Rosemberg Cariry (pai dele, consagrado como cineasta com "Corisco e Dadá"), vai ministrar uma aula sobre atuação no cinema e no teatro. Logo após, serão exibidos os já citados "O Barco" (às 16h) e "O Grão", às 18h. No último dia, na sexta-feira, dia 6, às 18h, será exibido "Mais Pesado É O Céu", que rendeu ao cineasta o troféu Kikito de Melhor Direção, no Festival de Gramado, em agosto.
Na entrevista a seguir, Petrus faz um balanço de que Ceará está em trânsito em sua narrativa.
Qual é o Ceará que está retratado nos seus filmes e de que forma você encontra um lugar na tradição audiovisual de seu país?
Petrus Cariry: Eu me esforço para capturar a autenticidade, os sonhos, as angústias e a beleza da vida cotidiana, sejam nas áreas urbanas ou rurais do Ceará. No que diz respeito à minha posição na tradição audiovisual do Brasil, vejo-me como parte de um movimento de cineastas que buscam contar histórias com um alcance universal, a partir de sua visão de mundo. Ao fazer isso, espero contribuir para a diversidade e riqueza do cinema brasileiro, destacando a singularidade da cultura e da paisagem do Ceará. Além disso, busco desafiar as convenções estabelecidas no cinema, experimentando com narrativas não lineares, imagens poéticas e ajustes na percepção de tempo. Estou sempre aberto ao diálogo com o mundo e tenho procurado realizar um cinema em trânsito, mesmo que seja todo ele rodado no Ceará. Procuro conjugar a estética a uma forma de narrar que revele novas dimensões do homem, mesmo quando esta dimensão se abre para a dor, solidão e a velhice.
De que maneira a Finitude e a maternidade, temas tão recorrentes em seu cinema autoral, carregam uma mirada política em sua forma de abordar o Nordeste?
A finitude e a maternidade são temas que, em minha abordagem cinematográfica, carregam uma mirada profundamente política em relação ao Nordeste. Para mim, a finitude representa a realidade crua da vida e da morte, que é uma parte inevitável da existência humana em qualquer lugar do mundo. No entanto, no Nordeste brasileiro, essa finitude muitas vezes se apresenta de forma mais acentuada devido às condições sociais e econômicas desafiadoras que a região enfrenta. A maternidade, por outro lado, é um elemento central em muitas das minhas histórias. Ela não é apenas um ato biológico, mas também carrega uma dimensão política e social profunda. As mães frequentemente desempenham um papel fundamental na sobrevivência e na resistência das famílias e comunidades. Elas enfrentam desafios inimagináveis e, ao mesmo tempo, demonstram uma incrível força e resiliência. Ao abordar esses temas em meus filmes, busco destacar as realidades cruas e complexas do Brasil.
O percurso profissional retratado na mostra da Caixa Cultural traduz o seu amadurecimento em relação a temas essenciais para o cinema brasileiro, como a luta das mulheres pela afirmação e os dilemas existenciais que rondam a pobreza e a luta pela sobrevivência. Mas o que o seu cinema carrega de sociológico em sua essência?
Meu cinema carrega uma abordagem sociológica que busca explorar e compreender as complexas dinâmicas sociais presentes no contexto do povo brasileiro. Embora meus filmes abordem temas como a luta das mulheres pela afirmação e os dilemas existenciais que cercam a pobreza e a luta pela sobrevivência, eles também buscam ir além da narrativa individual e mergulhar nas questões sociológicas mais amplas, que permeiam essas histórias. Ao retratar as vidas das pessoas, estou interessado em capturar a essência de suas experiências, revelando as estruturas sociais, econômicas e culturais que influenciam suas vidas. Isso inclui abordar as desigualdades sociais, as limitações impostas pela pobreza e as formas de resistência e de solidariedade que surgem em meio a essas circunstâncias.
Como funciona o polo industrial cearense como espaço de invenção audiovisual? De que forma o seu estado tem mantido sua imagem ativa e viva nas telas?
O cinema cearense desempenha um papel significativo como um espaço de invenção audiovisual no cenário brasileiro. O Ceará tem uma tradição de produção cinematográfica que se estende por várias décadas, e essa tradição continua a prosperar graças ao comprometimento de profissionais do audiovisual. O Ceará tem uma cena cultural vibrante, que nutre talentos locais e atrai profissionais do audiovisual de todo o Brasil. Além disso, tem festivais de cinema, como o Cine Ceará, e tem instituições de ensino superior, que têm desempenhado um papel fundamental na formação e no estímulo de novos cineastas. O governo do estado do Ceará tem tentado apoiar financeiramente projetos cinematográficos por meio de editais, permitindo que os cineastas independentes façam cinema.