Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Edgard Pêra: 'A poesia consiste, sobretudo, em falar de uma coisa sem a nomear'

Edgar Pêra: 'A minha esperança é de que se conheça melhor a obra de Pessoa' | Foto: Ana Soares/Divulgação

Reverente a experimentos cinematográficos centrados no esgarçamento do limite entre as convenções da linguagem audiovisual e a necessidade de reinvenção das telas, o Festival de Roterdã, na Holanda, deu à luz o primeiro gol de Portugal na disputa por sua afirmação como um primado autoral na cultura europeia: "The Nothingness Club - Não Sou Nada".

Edgar Pêra, seu realizador, é um lisboeta de 62 que, há uma década, dividiu a direção de um mesmo filme em episódios com Jean-Luc Godard (1930-2022) e Peter Greenaway - o surpreendente "3x3D" - e tem no currículo joias como "O Barão" (2011) e "És a Nossa Fé" (2004).

Rodou produções bem populares ("Virados do Avesso") mas também emplacou documentários salpicados de radicalismo ("5 de Abril - Uma Aventura Para a Demokracya"). Mas com seu novíssimo exercício autoral, ele surpreende a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com sua imersão no universo mental (e espiritual) do poeta Fernando Pessoa (1888-1935). Antes de arrebatar as miradas paulistanas, ele encantou Roterdã e chega ao circuito luso com a promessa de brilhar. Tem uma sessão a mais do longa-metragem produzido pela Bando à Parte, de Rodrigo Areias (diretor de "Hálito Azul"), na Mostra, nesta sexta-feira, as 16h15, no Espaço Itaú Frei Caneca.

Há uma fotografia estonteante neste thriller psicológico que decorre dentro da cabeça de Pessoa. No seu Clube do Nada, habitado por heterônimos, o poeta (vivido por Miguel Borges) consegue concretizar todos os seus sonhos. Mas a entrada em cena de uma mulher sofisticada, uma certa Ofélia, vivida por Victória Guerra, começa a desestabilizar o clube, enquanto o ultrajante heterônimo vanguardista Álvaro de Campos (Albano Jerónimo, o Wagner Moura dos portugueses) disputa a autoridade de Pessoa de forma violenta.

Qual é o fascínio que Fernando Pessoa exerce sobre o povo português e o quanto dessa mística em torno da heteronímia em sua obra se expande, amplia-se ou se contrai na forma como o teu "The Nothingness Club" dá abrigo às peças do puzzle humano que ele foi?

Edgar Pêra: A minha esperança é que se conheça melhor a obra de Fernando Pessoa a nível internacional, mas também a nível nacional, porque, em Portugal, o público conhece apenas os quatro principais heterónimos e não se apercebem da constelação de heterónimos que poeta criou para ter tantos os pontos de vista diferentes. O que me interessou foi poder mostrar a complexidade do seu pensamento, de como Pessoa não acreditava em dogmas. A sua relatividade surge ao mesmo tempo que a relatividade de Einstein, dando sobretudo enfoque no papel do observador. Ao criar personagens como autores de livros, Pessoa dramatizou o próprio acto criativo como mais nenhum escritor que eu conheça. Daí o considerar o mais complexo artista de palavras (termo pessoano) do século XX... e dos seguintes.

Como construir a luz, na direção de fotografia, num filme que fala sobre poesia?

A luz é tão importante como a banda (trilha) sonora. Todo o filme é feito de camadas que se sobrepõem, quer ao nível imagético quer ao nível sonoro. O mais importante durante a rodagem era que eu pudesse filmar como num documentário, num raio de 360 graus. Dito isto, acredito que há mais poesia neste filme quando não há palavras, porque a poesia consiste sobretudo em falar de uma coisa sem a nomear, como por exemplo falar de uma árvore sem nunca utilizar essa palavra.

Qual é a lógica de um star system para montar um elenco que viva heterónimos, com um astro como Albano Jerónimo no papel de Álvaro de Campos?

A lógica de escolher alguém como o Albano assenta sobretudo na experiência de ter trabalhado antes com ele no meu filme "Caminhos Magnéticos". Depois tivemos muitas conversas sobre o Álvaro de Campos, de tal forma que ele levou para rodagem todos os poemas incorporados na cena de forma a que nunca pareça que está a dizer um poema, como por exemplo, na cena final relativa ao Barão de Teive.