Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Hector Eduardo Babenco soprou sua 70ª velinha de aniversário cerca de cinco meses antes de morrer, deixando como legado uma obra encarada como a mais visceral triagem que o cinema brasileiro já fez sobre as populações marginalizadas.
Coroado com uma indicação ao Oscar de Melhor Direção por "O Beijo da Mulher Aranha", em 1986, ele desafiou os mais poderosos concorrentes hollywoodianos em circuito há duas décadas, quando levou "Carandiru" à tela, vendendo 4,7 milhões de ingressos com direito a disputar a Palma de Ouro de 2003.
Nesta segunda-feira (23), às 20h10, a Cinemateca Brasileira vai projetar esta cartografia do mundo carcerário, na grade da 47ª Mostra de São Paulo, que tem em seu júri uma companheira de vida e de filmes do cineasta: a atriz Bárbara Raquel Paz. Em 2019, ela foi premiada no Festival de Veneza por seu longa de estreia como realizadora - o belo ensaio .doc "Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou", no qual presta uma homenagem ao finado marido e colega de trabalho.
Ao mergulhar nas entranhas da Casa de Detenção São Paulo, em diálogo com a literatura de Dráuzio Varella, Babenco condensou sua percepção sobre a solidão dos excluídos e todas as marginalizações possíveis e prováveis, sempre abordando as estratégias de autorregenaração dos errantes. "Carandiru", ele revelou para o audiovisual dois gênios: Milhem Cortaz, no papel de Peixeira, e Aílton Graça, que vive Majestade.
Em sua trama, fotografada com tons barrocos por Walter Carvalho, um médico (Luiz Carlos Vasconcelos) se oferece para realizar um trabalho de prevenção ao vírus HIV no maior presídio da América Latina, o Carandiru. Lá, ele convive com a realidade dos detentos, que inclui violência, superlotação das celas e instalações precárias. Porém, apesar de todos os problemas, o profissional logo se depara com a solidariedade e a organização no local. Essas visitas médicas se tornam o contexto para histórias pessoais, em narrativas ambientadas dentro e fora da prisão, e que culminam no infame massacre do Pavilhão 9, ocorrido em outubro de 1992. Gero Camillo e Rodrigo Santoro encantaram o país, nesse contingente prisional, vivendo o casal Sem Chance e Lady Di. Os baianos Lázaro Ramos e Wagner Moura também integram o time de presidiários retratados pelo roteiro de Fernando Bonassi e Victor Navas, que tem ainda Ricardo Blat, Floriano Peixoto, Maria Luiza Mendonça, Antonio Grassi e Milton Gonçalves. Essa trupe tem um desempenho encantador sob a batuta de Babenco, que trazia em seu currículo o blockbuster "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia" (1977), visto por cerca de 5 milhões de espectadores, tendo Reginaldo Farias no papel central.
Mestiço de duas nações, sendo argentino com berço em Mar del Plata e brasileiro naturalizado paulistano nos anos 1970, Babenco foi de um tudo nesta vida, indo de figurante em westerns spaghetti a diretor cortejado pelo Oscar. Marcou gols em muitas áreas do verbo viver em sua obra, driblando adversários dos mais belicosos, da censura fardada dos anos 1970 ao linfoma com quem guerreou armado de oncologia e muita coragem.
Foi e é realizador dos grandes, pedaço indelével da História da América Latina em sua marcha para o Oeste e para o Leste do imaginário cinéfilo. Parte de suas peripécias pessoais serve de alimento a "O Amigo Hindu", que abriu a Mostra de São Paulo em 2015. É um drama autobiográfico que tem Willem Dafoe como seu protagonista e um Selton Mello em estado de Graça como um ser muito indesejado por todas as gentes, sobre o qual não se pode revelar nada. Dafoe revive - em releitura de licenças poéticas - os anos em que Babenco viveu uma guerra hospitalar. A Mostra de São Paulo segue até 1º de novembro.