Por: Rodrigo Fonseca (Especial para o Correio da Manhã)

CRÍTICA / CINEMA / NOSTALGIA: Era uma vez em Nápoles

Pierfrancesco Favino na arrebatadora narrativa sobre amizade numa Itália dominada pela Máfia | Foto: Divulgação

Coroado em 1992 com o Prêmio Especial do Júri de Veneza, por "Morte di un Matematico Napoletano", Mario Martone concorreu em Cannes, em 1995, com "L'Amore Molesto", e lá voltou, via Un Certain Regard, em 1998, com "Teatro di Guerra". Mas nada do que fez nos anos 1990, nem nas duas últimas décadas, pode se comparar ao que ele entrega no drama com elementos de thriller de máfia "Nostalgia", exibido em competição pela Palma de Ouro em 2022. Só agora o filme estreia comercialmente aqui.

Martone é um moderno tardio, que não se fez na liquidez moral da pós-modernidade. Mas ele teve a sagacidade de entender parte das chagas desse nosso tempo, como é o caso da gentrificação; do emasculamento; do sucateamento da honra; da destruição dos signos de fé, por apostasia ou por banalização. E esse sagaz olhar gera um filme universalíssimo, que se passa em Nápoles, mas poderia se passar na Penha.

Pierfrancesco Favino - que filmou "O Traidor" de Bellocchio aqui no Rio - é o aríete com o qual Martone avança rumo à consagração e a um merecido Prêmio do Júri, com seus ângulos de câmera vívidos e inquietos, explorando a profundidade de campo da Nápoles para onde seu protagonista regressa. Ele tem 95% de "Nostalgia" pra si. Os 5% que sobram se dividem entre o padre Rega (Francesco di Leva) e o bandido Oreste (Tommaso Ragno, um sósia do brilhante Roney Villela). Este foi o maior amigo que Felice, construtor e dono de empreiteira no Egito, vivido por Pierfrancesco, teve em seus anos de formação.

No início do longa, Felice regressa à sua cidade natal par cuidar da mãe doente. É um terço de arrancada doce, onde a câmera do fotógrafo Paolo Carneva gira em espasmos, caçando um quadro que fuja da obviedade. Caça, caça… e consegue. Sempre. Passada essa introdução com ares melodramáticos, de mamãe e filho, uma pergunta feita por Felice muda as rédeas da narrativa: "Onde está Oreste?". No passado, os dois eram unha e carne, até um crime mudar tudo. Ao tentar entender o que foi feito daquele amor de ontem, amor de bromance, de pura amizade, Felice começa a se (re)encaixar numa paisagem que abandonou há 40 anos. Mas nem sempre a paisagem nos quer de volta. Nem sempre aquele a quem confiamos nosso coração deu valor à imolação que fizemos, fortuitamente. O saldo é a ressaca. Mas nem toda ressaca é só de álcool, ou só de sal. Eis o que Martone nos mostra, num longa devastador.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.