Chegando a seu quinto dia de atividades transbordando de gente em suas salas exibidoras, o 71º Festival de San Sebastián amaciou os corações de sua terra natal, o norte da Espanha, ao abrir sua programação com o encantador "The Boy and the Heron", do octogenário animador japonês Hayao Miyazaki, encarado desde já como um convite ao Oscar.
Mas outras produções se afirmam como candidatos a cult no evento, com destaque para o Brasil. Confira a seguir o que Donostia (nome da cidade em basco, o falar de sua região) já viu de melhor:
ALL DIRT ROADS TASTE OF SALT, de Raven Jackson (EUA): Um austero estudo sobre a vida de duas mulheres, numa relação de maternidade, numa comunidade rural do Mississippi. Sua diretora é uma poeta, conhecida no universo literário pelo livro "little violences" e respeitada no cinema pelo curta-metragem "Nettles" (2018). Sua narrativa é metonímica, concentrando cada enquadramento em detalhes do que vê, vindo e voltando no tempo. O destaque de seu elenco é a atriz e cantora anglo-ugandense Sheila Atim, sobretudo na comovente sequência na qual segura uma menina no colo, num gesto maternal de acalanto brando, onde implode em angústias existenciais.
ESTRANHO CAMINHO, de Guto Parente: Apoiado no talento do ator Carlos Francisco (de "Marte Um"), o cineasta cearense que integrou o coletivo Alumbramento e foi um dos quatro diretores do mítico "Estrada Para Ythaca" (2010) arranha aqui o filão do extra-ordinário (nome dado a tramas centradas em mistérios sobre-humanos). No enredo, um jovem realizador radicado em Lisboa (Lucas Limeira) volta ao Ceará, pouco antes do alastramento da covid-19, e acaba ficando confinado em Fortaleza. Sem ter onde ficar, vai atrás de seu exótico pai (papel de Francisco). O longa passeou pelo Festival de Tribeca, em Nova York, em junho, e conquistou quatro troféus por lá.
ATIRARAM NO PIANISTA ("Dispararon Al Çianista"), de Javier Mariscal e Fernando Trueba (Espanha): Onze anos depois de concorrem à estatueta de Melhor Animação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood com "Chico y Rita", a dupla de cineastas fazem uma viagem sentimental a um dos episódios mais tristes da História do Brasil ao recriarem a desaparição do ás do piano da bossa nova Tenório Jr. (1941-1976), em Buenos Aires. Os dois animam a paisagem carioca nos anos 1960, 1970 e 2020 tendo Jeff Goldblum como voz de um jornalista americano dedicado a investigar o paradeiro do músico. Titãs como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, João Donato (1934-2023) e o poeta Ferreira Gullar (1930-2016) ganham versões animadas no longa, que tem Tony Ramos em seu elenco de vozes.
BLONDI, de Dolores Fonzi (Argentina): Uma das atrizes de maior prestígio do cinema portenho em atividade, consagrada por dramas como "Paulina" (2015), estreia na direção de longas com uma narrativa leve (e comovente) sobre os dilemas do amadurecimento. Ela ainda assume o papel principal. Blondi, que considera ter sido mãe cedo demais. A dificuldade de lidar com o ônus da maternidade a leva a ter uma relação nada ortodoxa com seu filho.
ORLANDO, MA BIOGRAPHIE POLITIQUE, de Paul B. Preciado (França): Livros como "Um Apartamento Em Urano" (2020) e "Eu Sou o Monstro Que Vos Fala" (2022) fizeram dete cineasta estreante uma grife literária por trás da afirmação identitário dos corpos não binários. Por trás das câmeras, Preciado afirma sua condição de trans, num diálogo - entre narrativa documental e o ensaio - com a obra de Virginia Wolf. Ganhou o troféu Teddy (premiação queer de Berlim) e o prêmio especial da mostra alemã Encontros. Sua montagem é um achado.
EL ECO, de Tatiana Huezo (México): Foi o vencedor da disputa de Melhor Documentário da Berlinale e ainda conquistou por lá a Láurea de Melhor Direção da mostra Encontros, consagrando a realizadora de "Reze pelas Mulheres Roubadas" (2021). Ela fez aqui um registro poético sobre um vilarejo mexicano que parece parado no tempo, castigado pelo frio e por secas, no qual jovens cuidas de suas avós, assim como tomam conta de rebanhos carentes de melhores condições. É uma metáfora entre a natureza humana e a vida animal.
EL VIENTO QUE ARRASA, de Paula Hernandez (Argentina): A diretora de "Lluvia" (2008) levou a Donostia seu longa mais maduro, com base na literatura de Selva Almada. A trama narra a viagem de uma mulher, Leni (Almudena González), com seu pai, o reverendo Pearson (o chileno Alfredo Castro), a uma missão religiosa. Ao perceber a obsessão do religioso por um rapaz, Tapioca (Joaquín Acedo), Leni decide tomar as rédeas de seu destino, fazendo do filme um levante feminista.