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Bárbara estética queer

A guerreira Conann celebra a estética queer, marca registrada de Bertrand Mandico | Foto: Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Depois de Cannes aplaudir Bertrand Mandico, é hora de essa, digamos, "entidade" da cultura audiovisual arrebatar os elogios do Festival de Locarno, onde tem dois filmes em cartaz. É indiferente o uso de vocábulos masculinos, ou de expressões como "senhor", para definir o multiartista francês, embora ele se assuma como não-binário, o que exigiria a utilização de pronomes diferentes, de uma linguagem neutra.

Ele brinca que se vê como "atriz", uma vez que a performance é sua forma de expressão. Uma delas, pois foi com o cinema, dirigindo longas-metragens e experimentos de artes visuais que sua fama chegou. Ele virou uma das vozes autorais mais potentes do audiovisual europeu depois que um de seus filmes, "Os Garotos Selvagens", encabeçou a lista dos melhores filmes de 2017 da "Cahiers du Cinéma".

A revista, ainda encarada como bíblia para a cultura fílmica, trata Bertrand como um xodó. Desde então, sua obra explicitamente queer, carregada de erotismo em seu debate sobre o desejo, virou cult. Por isso, a inclusão de seu mais recente exercício narrativo, "Conann", na Quinzena de Cineastas (outrora chamada Quinzena dos Realizadores), foi encarada como um dos pontos altos da seção paralela mais respeitada do Festival de Cannes. O êxito na Croisette garantiu um passaporte suíço para o filme.

Além dessa alegórica reinvenção de conceitos do thriller capa & espada, Mandico traz consigo para Locarno um curta-metragem: "Nous Les Barbares". São filmes gêmeos, apesar de toda a diferença de duração entre eles. O título do longa sugere, de imediato, uma conexão com o bárbaro criado em 1932 por Robert E. Howard (1906-1936) na literatura Pulp, celebrizado nas HQs Marvel nos anos 1970 e imortalizado por Schwarzenegger. Mas, em seu filme, o signo muda: Conann é uma amazona, das mais temidas, e sua história é narrada por um oráculo com seios.

"É da força das mulheres que a gente precisa para mudar uma realidade autoritária que tentou cassar o acesso à liberdade que todo ser vivente tem. Regras morais não podem limitar um processo criativo, tampouco imposições biológicas ou sociais", disse Mandico ao Correio da Manhã, ao conquistar o Prêmio da Crítica, votado pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci), no Festival de Locarno de 2021, por "After Blue (Paraíso Imundo)". "Qualquer padrão imposto pode ser quebrado em prol da livre expressão".

Revelado como cineasta em 1998, ao lançar o curta "Le Cavalier Bleu", Mandico dialoga com as cartilhas das narrativas fantásticas a partir da influência que carrega dos quadrinhos europeus dos anos 1960 e 70. Nascido em março de 1977, em Toulouse, ele cresceu lendo a HQ "Métal Hurlant" ("Heavy Metal" no Brasil), gibi que nos revelou Moebius, Richard Corben e muitos outros talentos do desenho, pautados pela lisergia.

"Em tempos de cultura do ódio, a fantasia é um caminho alternativo, que nos permite respirar pelos pulmões da estranheza, e perceber a intolerância que nos venda", disse Mandico.

Em 2023, Locarno acolhe duas produções nacionais em concurso: os curtas-metragens "Du Bist So Wunderbar", de Leandro Goddinho e Paulo Menezes (feito em coprodução com a Alemanha) e "Pássaro Memória", de Leonardo Martinelli, na competição Pardo di Domani. Martinelli saiu de lá premiado em 2021 pelo musical "Fantasma Neon" (um dos curtas mais laureados do país) e regressa este ano de volta ao mesmo filão. Ao lado desses curtas, na seção Histoire(s) du Cinéma, vão estar em retrospectiva dois cults de Rogério Sganzerla (1946-2004), de quem Nazzaro é fã declarado: "Documentário" (1966) e "Abismu" (1977).