Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
"OSom ao Redor" (2012), "Aquarius" (2016) e "Bacurau" (Prêmio do Júri em Cannes em 2019), três dos mais aclamados filmes brasileiros da segunda década deste século até hoje, só saíram do papel, para se tornarem realizações premiadas do diretor Kleber Mendonça Filho, graças ao impecável trabalho de produção da francesa Emilie Lesclaux. Hoje, ela emplaca mais um potencial ímã de elogios aos olhos da Europa.
Às 14h15 do Brasil, 19h15 da França, o Festival de Cannes exibe "Retratos Fantasmas", documentário sobre a memória, dirigido por Kleber a partir de fotos - sobretudo de antigas salas de projeção, a maioria de rua, hoje fechadas ou substituídas por farmácias ou templos - das quais ele se alimenta para realizar um ensaio com foco na permanência. E com foco no Recife, sua terra, hoje também adotada por Emilie, sua companheira, na vida e nas telas. A química profissional entre eles vem gerando narrativas ousadas e notabilizando talento dela no exterior. Ela produz outros talentos também.
Na entrevista a seguir, Emilie fala de sua imersão na brasilidade e explica como construiu um olhar arguto - notável por sua precisão em detalhes de sets -sobre Pernambuco.
"Retratos Fantasmas" nos promete uma viagem emocional pela memória do patrimônio afetivo das salas de cinema de um Brasil de outrora. De que forma esse projeto ampliou sua visão sobre o passado do Recife e, de certa forma, sobre o presente, a se pensar a atual cena exibidora da cidade?
Emilie Lesclaux: O Recife é um caso muito atípico de uma cidade que ainda tem salas de mais de 70 anos. Desde que moro aqui, acho isso uma sorte incrível. Lembro de descobrir o Cinema do Parque e o Cinema São Luiz quando cheguei em 2002. Lembro de ficar maravilhada com a beleza desse patrimônio e entender também a importância dessas salas como espaços de formação e de valorização do cinema nacional, do cinema pernambucano. Ver "Cidade de Deus" e "Amarelo Manga" nessa época, no centro da cidade, foi uma experiência incomum. Lembro muito de ver "A Paixão de Cristo" de Mel Gibson num São Luiz lotado. Parecia uma igreja. Também vivi como produtora a exibição dos nossos filmes nessas salas, e ver as filas de pessoas querendo assistir a "Bacurau" darem a volta do quarteirão do Cine São Luiz foi algo emocionante. Também passei várias edições do Janela Internacional de Cinema do Recife programando filmes para essas salas. Acompanho o amadurecimento deste projeto de Kleber há muitos anos e, além dos filmes, vejo a paixão dele pelo centro do Recife através dos cinemas de rua. Isso sem dúvida moldou a minha visão do passado da cidade, a maneira que eu olho para os detalhes, as ruas e os prédios do centro. Sinto uma nostalgia de um Recife que não conheci, o que é uma sensação estranha, bonita e triste.
Qual foi a sala de cinema da sua infância na França e que filme te fez amar o cinema?
Eu frequentava várias salas do centro de Bordeaux, como o Ariel (hoje UGC Ciné Cité); o Gaumont, que não existe mais, e o Français. Adolescente, eu me formei muito como cinéfila no Cinema Utopia, que foi construído dentro de uma antiga igreja medieval, além do Cinema Jean Eustache, em Pessac, perto de casa.
Todos os grandes filmes de longa metragem que Kleber Mendonça trouxe a Cannes são produzidos por você. Como funciona a cooperação criativa de vocês? O que cada filme dele te mostrou sobre os processos de produção no Brasil?
Eu comecei a produzir filmes ajudando Kleber em várias funções nos curtas dele e no documentário "Crítico", de 2008. Quando os filmes cresceram, foi algo natural e não planejado eu me especializar na produção. Criamos a nossa produtora, a CinemaScópio, e comecei também a trabalhar com outras diretoras e diretores, mas a nossa parceria é uma constante. Acompanho todo o processo criativo, da primeira ideia à montagem. Sou naturalmente a primeira pessoa para quem ele vai mostrar um roteiro ou uma cena montada. Em termos de produção, cada filme foi uma experiência bem diferente. Fizemos "Recife Frio" da forma mais artesanal possível ao longo de alguns anos, acumulando funções e saindo para filmar cada vez que chovia. Nos longas, fui aprendendo a produzir de outras formas, da captação, ao modelo de financiamento e desenho de produção. Estou sempre aprendendo na verdade.
Quais são os seus próximos projetos?
Estou em pós-produção de dois longas: "Sem Coração", de Nara Normande e Tião, e "Fora d'Água", de Nele Wohlatz, e de uma série, "Delegado", de Marcelo Lordello e Leonardo Lacca (para o Canal Brasil). Estou também produzindo o primeiro longa-metragem documental de Helen Beltrame Linné, "Minha Carta para Bergman", e os filmes de ficção de Leonardo Lacca ("Sábado Morto"), Leonardo Sette ("Isolar"), e do próprio Kleber ("Agente Secreto"). Sou ainda coprodutora do próximo filme de Maya Da-Rin, "Canção da Noite".