Brasis com luz de Caffé

Realizadora de 'Narradores de Javé' volta aos sets com 'Filho do Mangue', em produção em Barra do Cunhaú, no Rio Grande do Norte

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Eliane Caffé e o produtor Fernando Muniz no set de 'Filho do Mangue, um longa rodado na localidade de Barra do Cunhaú (RN)

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Jargão geopolítico namorado pela arte múltiplas vezes desde os anos 1960, "Brasil profundo" é a expressão mais recorrente para definir histórias ambientadas fora dos eixos metropolitanos - leia-se Rio e São Paulo - mais corriqueiros nas narrativas nacionais, mas que sempre soube ser usada pela cineasta Eliana Caffé com mais criatividade e, sobretudo, mais poesia, do que a média. Basta ver joias de sua carreira como "Kenoma" (laureado em Biarritz, na França, em 1998) e "Narradores de Javé" (indicado ao troféu Tigre do Festival de Roterdã, na Holanda em 2003). Neste momento, envolvida num projeto de longa-metragem produzido por Fernando Muniz e Beto Rodrigues, a realizadora paulista está no Rio Grande do Norte, na região de Barra do Cunhaú, preparando "Filho do Mangue". Felipe Camargo é um dos sóis de uma constelação de talentos: Roney Villela, Titina Medeiros, Jeneffer Setti, Thiago Justino, Genilda Maria, Luana Cavalcante.

O roteiro, do eterno colaborador de Eliane - o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, autor de "Lima Barreto ao Terceiro Dia" -, proseia com a literatura de Sérgio Prado, no romance "O Capitão", para extrair um lirismo peculiar ao universo de Caffé, já decidida a abrir importantes participações pros moradores do Cunhaú e pra população indígena Potiguara Katu (RN). Vão estar em cena ainda integrantes da Associação dos Ostreicultores de Canguaretama e a comunidade do Porto Cooperativa (RN).

Atrizes e atores profissionais do RN estarão no projeto, mas há uma aposta essencial ao cinema de Eliane em vivências de intérpretes não profissionais, vide "Era o Hotel Cambridge", que foi ovacionado no Festival de San Sebastián, em 2016. "Essa opção estética e dramatúrgica nasce da percepção de que boa parte das culturas populares que animam a vida no Brasil se encontram ainda, em grande medida, invisibilizadas e fora de representações cinematográficas que dominam nossas telas. Esses atores e atrizes naturais alimentam um imaginário potente e muito criativo", disse a realizadora, em mensagem de texto ao Correio da Manhã.

"Filho do Mangue" tem como eixo um pescador, Pedro Chão (Felipe Camargo), homem de mau caráter, individualista e desregrado, que aparece ferido e sem memória em sua comunidade ribeirinha. O povo o acusa de roubo e tenta, em vão, que ele recupere a memória e devolva o dinheiro. Num julgamento popular, vem à tona uma trama que envolve desvio de verba pública, violência doméstica e tráfego sexual de jovens locais. Condenado ao isolamento, ele perambula pela comunidade em busca de um seu lugar. Um novo sentido de vida renasce quando, através da construção de uma engenhoca inusitada, ele encontra algo fundamental na força da coletividade.

"Nesse filme, o mangue representa a nascente do modo de vida da pesca familiar que está sendo devorada pelos empreendedores do lucro e do capital. Ao mesmo tempo, o mangue é a expressão da natureza mãe de onde todos os seres vivos, incluindo nós, somos energizados e acolhidos no sentido vital de existirmos. Saibamos ou não", diz Eliane, explicando como cria em parceria com Luís Alberto. "Nossa parceria vem desde o início de minha carreira de cineasta. Ele foi e continua sendo o meu mestre na dramaturgia implicada com o ser humano. O Brasil que nos interessa é o Brasil que constrói sua própria narrativa desde o lugar da resistência, frente à força avassaladora do capital que subtrai e tritura tudo o que atravessa seu caminho. A poesia mais potente da vida está sempre com os que estão na vanguarda da transformação histórica".