Por:

Um novo cult 20 anos após 'Adeus, Lênin!'

Daniel Brühl e Peter Kurth tem um duelo de esgrima verbal em 'A Porta Ao Lado' | Foto: Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Visto no oscarizado "Nada de Novo no Front", hoje um dos destaques da Netflix, o ator teuto-espanhol Daniel César Martín González Brühl já destilou vilania em adaptações de HQs pro cinema ou pro streaming, vide a série "Falcão e o Soldado Invernal", da Disney . Também já brilhou como o piloto Niki Lauda em "Rush: No Limite da Emoção" (2013), pelo qual recebeu uma indicação ao Globo de Ouro.

Mas atuar passou a ser pouco para dar conta da inquietude de um astro cheio de potência, que chegou a ser dirigido pelo carioca José Padilha em "7 Dias Em Entebbe" (2018). Brühl sabe rir de si mesmo quando busca reforçar seu lugar de honra entre os intérpretes mais inquietos da Europa nos dias de hoje. Autocrítica é parte da força criativa que leva para o genial "A Porta Ao Lado" ("Nebenan"), que acaba de integrar o menu da HBO Max no Brasil. A produção concorreu ao Urso de Ouro na Berlinale 2021.

Bem antes de "Toni Erdmann" (2016) devolver ao cinema alemão uma popularidade como ele só desfrutara nos melhores tempos de Volker Schlöndorff, Fassbinder, Wenders e Herzog, um ritual de desapego aos pretéritos que o motor econômico da Europa viveu, no pós-Guerra fez do parque audiovisual dos povos germânicos uma plataforma de culto: "Adeus, Lênin!" (2003). Fenômeno de bilheteria com um faturamento estimado em US$ 79 milhões, aquele longa chamava a atenção pelos atos picarescos de um rapaz para proteger sua mãe do choque de saber da reunificação das duas Alemanhas. Mais do que a sacada das espertezas do personagem, havia, na dramédia de Wolfgang Becker um astro nato: Brühl, então entre os 24 e 25 anos. Muitos jovens atores não americanos (Gael García Bernal, Louis Garrel, Riccardo Scamarcio) apareceram no alvorecer do século, mas poucos alcançaram uma trajetória como a dele. Fez cults ("Bastardos Inglórios"), fez séries ("O Alienista") e ainda oxigenou a vilania da Marvel, no papel do Barão Zemo, em "Capitão América: Guerra Civil" (2016), numa aura de maldade que se repete agora no já citado seriado da Disney. Agora, aos 44 anos, ele se lança como realizador, alcançando elogios por sua precisão, parte por sua aposta no risco.

"Durante ano a fio, tudo o que me ofereciam tinha a ver com aquele jovem sem lastro de 'Adeus, Lênin!', o que me ligou os faróis de alerta: 'Cuidado para não se repetir!'. Ali, eu passei a tentar me diversificar ao máximo", disse Brühl em entrevista via Zoom ao Correio da Manhã.

Autocrítica pura e aplicada, "A Porta Ao Lado" é uma espécie de "Birdman" jovial. Assim como na oscarizada dramédia de Alejandro González Iñárritu, a imposição de um filme de super-herói como trilha para o sucesso de um ator é alvo de debate. Mas diferentemente do personagem de Michael Keaton, que vivia à sombra de um Batman de penas, o Daniel encarnado por Brühl, na trama escrita por Daniel Kehlmann, ainda não uma Liga da Justiça em sua vida. Ele está a um passo de fechar um contrato para um projeto com vigilantes mascarados. Fala-se em dado ponta de um "Darkman 2", sem conexões com o filme de Sam Raimi. O ponto é: para alguém que é lembrado por um seriado de quinta, que fez na TV alemã, fazer cinemão é um trampolim - mais para o estrelato do que para a realização. Mas Daniel tem filhos pra sustentar e uma vaidade enorme para alimentar. Consciência pesada ou não, ele tem uma viagem a fazer e um contrato para assinar. Mas, para isso, uma bicadinha numa cerveja ajudaria. Eis que ele para num bar. Só poderia ter escolhido um lugar diferente.

Nada contra o atendimento ou as bebidas. O problema é que um dos clientes, Bruno (o genial Peter Kurth), vem de um lugar parecido com o de Daniel e sabe que a gentrificação uniu os dois: um anônimo como ele e um dublê de superstar. E Bruno está sedento pra falar disso. Entre os dois se estabelece uma relação especular feroz. É uma relação que Brühl desenvolve como numa peça teatral, onde os atos são separados por um arejamento do palco principal (o bar), com sazonais saídas dele, para respirar, para tentar ir embora.

É uma narrativa nervosa, que exaspera e transcende nossas expectativas, propondo um painel da Alemanha hoje a partir das angústias de sua população. Na versão brasileira, Daniel Müller dubla Brühl e Eduardo Borgerth empresta a voz a Kurth, num desempenho memorável.