Um animal poético
Aos 84 anos, o cultuado cineasta Jerzy Skolimowski entra no páreo do Oscar com 'EO', cujo protagonista, um burro solto de um circo, testemunha a bestialidade humana
Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Filmes premiados, mas hoje esquecidos, como "Ataque em Alto-Mar" (1985), "Vivendo Cada Momento" (1982) e "Barreira" (1966) garantiram ao artista plástico, cineasta e (vez por outra) ator Jerzy Skolimowski um lugar perene de destaque nos maiores festivais do mundo e mesmo a simpatia de Hollywood, onde emprestou seu carisma à polonesa a "Marte Ataca!" (1995) e "Os Vingadores" (2012).
São 63 anos de carreira, em 84 primaveras de vida, que fazem dele o realizador mais experiente entre os cineastas com filmes em concurso no Oscar 2023. Ele está no páreo da estatueta de Melhor Filme Internacional, defendendo sua Polônia natal (terra de gigantes como Andrzej Wajda, Krzysztof Kieslowski, Agnieszka Holland e Roman Polanski, colega de juventude e parceiro no cult "Faca na Água", do qual foi dialoguista) com uma triste fábula de denúncia à violência contra os animais. Numa combinação de um pleito militante bem defendido e de um vigor estético mesmerizante, "EO" ("Hi-Han"), essa sua narrativa de timbre fabular, ganhou o Prêmio do Júri de Cannes e segue angariando fãs mundo afora.
"A última coisa que um artista deve fazer é ser chato. A penúltima, é se repetir, consciente de estar esgotado. A terceira é não pensar a força plástica do plano. A tela em branco onde nosso filme é projetado é igual a uma tela a se encher de tinta para ser exposta numa galeria. É um objeto que carece de nossa percepção de volume, de espaço, de fricção", disse Skolimowski ao Correio da Manhã quando atuou em "O Caravaggio Roubado" (2018) e iniciou "EO".
Seu título se pronuncia como uma onomatopeia, pois é uma referência sonora ao zurro que os asnos fazem (aquele "inhóóó inhóóó"), num motivo óbvio: seu protagonista é um burro, cujo calvário comove espectadores. Ganhador do Urso de Ouro da Berlinale, em 1967, com "Le Départ", Skolimowski visitou o Brasil 13 anos trás, por conta de uma retrospectiva de sua obra no Festival do Rio. Na ocasião, ele contou ao Correio que não gostaria de ficar limitado às praias de Copacabana. "Um país só se desnuda em toda a sua verdade geopolítica na voz de sua periferia. Eu fico curioso com a imagem do subúrbio do Rio, pois a realidade de uma cidade fascinante como essa deve estar nas áreas não turísticas, onde é possível ver esse povo como ele é", disse, à época, o octogenário realizador, que integra a grade da plataforma MUBI com um de seus primeiros sucessos: "Sinais de Identificação: Nenhum", lançado no Festival de Pesaro, em 1965. "Se existe aquilo que chamam de 'humanismo', que nada mais é do que um misto de perplexidade com empatia, o meu é movido por figuras marginais, excluídas dos processos diários do sistema vigente. Um burro que é acossado pela brutalidade dos homens, sem piedade, é um ser marginal".
Celebrado como um tratado de amor à natureza, "EO" mistura elementos quase fantásticos com realismo ao narrar as peripécias de um burrico que perde seu lar, num circo, e vaga Europa adentro, parando num campo de futebol e num templo religioso. A busca por sua tratadora o leva aos lugares mais exóticos. A narrativa abusa de um jogo de cores sinestésico, numa edição febril, que mistura naturalismo e delírio. É uma abordagem originalíssima para a luta em prol da defesa ecológica. "O que Jerzy buscava era dividir com o espectador a chance de compartilhar das angústias de um ser vivo considerado não racional, mas que expressa a vida em seu olhar, na penúria e no encanto", disse a roteirista e produtora do filme, Ewa Piaskowska (mulher de Skolimowsky), em entrevista ao Correio em Cannes. "Escrevi essa narrativa com ele sempre valorizando as peripécias das andanças do animal. Coube a Jerzy incluir seu olhar como pintor em experimentos visuais".
Parceiro de Eva no roteiro da comédia "The Palace", o novo Polanski, previsto para estrear em abril, Skolimowski passou quase 20 anos, entre 1988 e 2008, sendo lembrado mais como pintor do que como realizador, até ser resgatado por Cannes, há 15 anos com a projeção do estonteante "Quatro Noites Com Anna", na Quinzena dos Realizadores. Dois anos depois, recebeu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza por "Matança Essencial", dado por Quentin Tarantino, que enxerga nele um deus da imagem. Ele só não foi à Croisette, em 2022, para acompanhar "EO", por ter sofrido um acidente, na Polônia, onde machucou o joelho numa queda. "Quero que as pessoas olhem o mundo com o olhar desse burro", disse o cineasta em um vídeo enviado a Cannes. "Quero tocar corações".
O Oscar parece já ter sido tocado por ele.
