O papa do cinema marginal
Conheça Ozualdo Candeias, realizador que completaria cem anos neste dezembro
Por Henrique Artuni (Folhapress)
Ozualdo Candeias inspeciona a tampa de um bueiro em uma obra na zona oeste de São Paulo. Ele quebra o cimento e averigua o ferro da estrutura. Mas em vez de uma bitola de três oitavos, encontra um vergalhão mais fino que o padrão exigido pela construtora. "Não deu outra. Embargou a obra, tiveram que quebrar e refazer tudo", diz o técnico de cinema Virgílio Roveda, vulgo Gaúcho, ao se lembrar do colega bigodudo que trabalhava como funcionário público da prefeitura, caminhoneiro e também cineasta. "Ele era muito caxias."
Foi com esse mesmo jeitão que Candeias pôs Roveda na equipe de um filme em 1967. "Vem cá, você sabe ler e escrever? Então vai anotando o que eu falar", disse o diretor, entregando claquetes, folhas de continuidade e o roteiro para o rapaz.
Aflito, ele corria atrás do diretor, que comandava quatro personagens pelo centro de São Paulo e às margens do rio Tietê. Ganhavam a tela figuras miseráveis, pescadas da vida ou de jornais pitorescos - como a mulher negra, vivida por Valéria Vidal, que decide nunca mais tirar seu vestido de noiva depois de levar um toco no altar. "Toda vida eu fui isso, mas nunca tinha me preocupado", afirmou o cineasta, quando decidiu que buscaria a poesia bruta desses seres.
Depois de enfrentar a produção precária, o técnico ficou radiante ao ver seu nome na telona como assistente de direção de "A Margem". Nascia ali não só o primeiro título de uma longeva parceria entre os dois, como também a fita que batizaria o cinema marginal paulistano.
Essa visão particular criou ainda títulos como o faroeste caboclo "Meu Nome É Tonho", de 1969, transpôs a Dinamarca de Hamlet para um fazendão em "A Herança", de 1970, e retratou trabalhadoras de canaviais que recorriam ao meretrício em "Aopção ou as Rosas da Estrada", de 1981.
"Candeias captou aspectos do povo brasileiro de uma maneira que poucos cineastas conseguiram, absorvendo as limitações de produção impostas e devolvendo uma verdade e uma inventividade impressionantes", diz o produtor Eugênio Puppo, atual guardião da obra do diretor e autor do filme-ensaio "Ozualdo Candeias e o Cinema".
Obras desse marginal entre marginais, que nunca teve grandes bilheterias, serão exibidas na Cinemateca Brasileira entre esta quinta e domingo em cópias restauradas. No streaming Itaú Cultural Play (https://assista.itauculturalplay.com.br/Home), alguns longas e médias, como "Zézero", também estão disponíveis. Morto há 15 anos, o motivo da celebração são os cem anos que o cineasta teria completado neste ano - pelo menos é o que diz seu RG. Registrado em Cajobi (SP), em 1922, Candeias acreditava ter nascido quatro anos antes em alguma cidade de São Paulo ou Mato Grosso.
Atores negros aparecem nos seus filmes menos por militância do que por um olhar objetivo para o entorno. Mesmo assim, a Ofélia de Zuleica Maria em "A Herança" despertou reações negativas de críticos, que viram a escolha como ofensiva a Shakespeare. Sem dinheiro para dublar a fita, Candeias fez um filme quase mudo e aproveitou cantos de pássaros e sons de animais para dar voz aos personagens. Encaixou legendas nas cenas em que o texto era indispensável.
"Ele era um Charles Bronson", afirma David Cardoso, o rei da pornochanchada, que, além de ter vivido Hamlet, produziu "Caçada Sangrenta" e chamou Candeias para dirigir este que foi seu primeiro longa colorido, em 1974 - cheio de ação, mulher pelada e paisagens de Mato Grosso, para honrar os equipamentos fornecidos pelo governo. "Ele não dava muita explicação, não sentava com o ator. Sempre tinha uma forma distinta de fazer as cenas", diz o ator. "Ele foi o mais primitivo dos cineastas". O adjetivo, oportuno à primeira vista, não estava entre os preferidos do diretor, um autodidata que aprendeu na marra com livros técnicos estrangeiros.
Não é à toa que se esquivava quando os críticos comparavam, por exemplo, a canoa de "A Margem" com Caronte, o barqueiro do Hades. "Isso é ignorância. Não sabem que antigamente pequenos barcos transportavam pessoas e cargas de uma margem à outra", rebateu Candeias. "Essa postura anti-intelectualista estava em voga entre os cineastas paulistas no fim dos anos 1960", diz Puppo. "Candeias tinha bastante repertório, cursou o Seminário de Cinema do Masp, teve contato com muitas produções." Ainda que raros, é possível encontrar depoimentos em que ele cita Pudovkin, Eisenstein, Buñuel e outros autores que norteavam sua objetiva.
O apuro técnico e o talento para improvisar faziam com que a versatilidade de Candeias se confundisse por vezes com teimosia, acredita Gaúcho. Afinal, ele mirava um cinema de autor radical, cuidando de tudo, da câmera e do roteiro até os figurinos, isso quando não atuava. Ele se zangava quando não o obedeciam - sorte que o assistente sabia o que fazia.
