Por:

'Um roteiro não filmado é como um amor mal acabado'

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Um ano depois de conceder o prêmio principal de sua competição de curtas ao musical carioca "Fantasma Neon", de Leonardo Martinelli, o Festival de Locarno, na Suíça, sob direção artística de Giona A. Nazzaro, inicia sua 75ª edição nesta quarta-feira, com a projeção de um thriller com Brad Pitt ("Trem-Bala"), trazendo o Brasil novamente em concurso, agora entre os longas-metragens, com "Regra 34", de Julia Murat.

Mas um dos destaques de uma programação que promete polêmica, ao remexer o histórico de guerras da Rússia, com "Fairytale", de Alexander Sokurov, é a homenagem a um cineasta que chega aos 90 anos em 12 de fevereiro de 2023 sob a égide da provocação: Costa-Gavras.

"Com o descrédito das lutas de classes, a religião mais poderosa que existe neste mundo se chama Dinheiro, uma força amoral que não guarda respeito por nada", disse o cineasta ao Correio da Manhã, numa entrevista em Paris, em 2020.

Respeitado como um papa do thriller político, à força do sucesso mundial de "Z" (1969), o realizador franco-grego vai ser homenageado no dia 11 de agosto por Locarno, onde receberá um troféu honorário pelo conjunto de sua carreira como cineasta. Agendado de 3 a 13 de agosto, o festival suíço vai exibir dois dos filmes mais antigos de seu homenageado: "Tropa de Choque: Um Homem a Mais" (1967) e "Crime no Carro Dormitório" (1965). São títulos de uma fase anterior à sua consagração. "Dialogo com o suspense de modo a ter um ponto de conexão com as plateias às quais vou apresentar minhas teses. Plateias que, muitas vezes, estranharam ver um camarada que discutia o papel da esquerda e da direita, como eu sempre faço", disse o cineasta, que esteve em Cannes este ano para um debate sobre o futuro do cinema.

No Brasil, o longa-metragem mais recente do diretor, o imperdível "Jogo do Poder", está disponível na plataforma Amazon Prime. Ao ser homenageado pelo conjunto de sua obra no Festival de Veneza, há três anos, quando pôs esse trabalho, batizado originalmente de "Adults in The Room", na roda pela primeira vez, Konstantinos Gavras (seu nome de berço) incluiu o Brasil num debate acerca da economia da exclusão. Na ocasião, ele definiu nosso atual presidente com uma analogia irônica: "Bolsonaro é Charles Chaplin".

Na ocasião, o diretor explicou: "Um roteiro não filmado é como um amor que acabou mal. E eu tenho vário amores quer não terminaram bem, nessa lógica da escrita de filmes. Contei as histórias que queria, embora eu tenha vontade de contar outras", disse Costa-Gavras ao P de Pop. "Cinema não é como um jogo de futebol, em que as regras estão estabelecidas, cronometradas e arbitradas. Cinema é um espetáculo vivo, que se pensa".

"Jogo do Poder" é um drama de tintas cômicas sobre a crise da Grécia nos anos 2010. "Vivo na França há anos e já filmei no mundo inteiro, mas, se você nasce grego, todo o passivo histórico de nossa pátria vem com a gente, e a tragédia é parte desse patrimônio que nos define. A minha contribuição a uma situação de tensão como essa que enfrentamos em nosso país, com a falência econômico, é abrir reflexões que transcendam fatos. Fato é para o jornalismo. O cinema parte do fato para gerar transcendências", disse o realizador que partiu do livro homônimo de Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, sobre a falência de sua nação no fim da primeira década do século.

Christos Loulis vive o próprio Varoufakis no longa-metragem, que se concentra em tramitações políticas e judiciais de 2015 para travar a bancarrota das finanças gregas. Valeria Golino e Ulrich Tukur completam o elenco da produção, centrada em tramitações políticas e judiciais de 2015 para travar a bancarrota das finanças gregas. "Estou há muito tempo atento ao que se passa na Grécia, em suas várias tragédias. Comecei essa história em 2007, quando percebi que a Grécia ia quebrar e que a esquerda ia se colocar mais à direita diante do quadro econômico do país. Espero que a nova presente da Comissão Europeia ajuste essa situação", disse o cineasta, que relembrou fatos marcantes de sua vida nas telas na autobiografia "Va où il est impossible d'aller", lançado em 2018, em meio ao Festival de Cannes.

Egresso de uma vila do Peloponesso chamada Loutra-Iraias, Costa-Gavras, ganhador da Palma de Ouro de 1982, com "Missing", seguiu atacando o lado mais conservador da política sul-americana. Segundo ele, "incongruências do contemporâneo nos seguem por todos os lados". Em 2019, ele ainda ganhou tributos em San Sebastián por sua bem-sucedida carreira. "Houve um tempo em que cinema de autor era um cinema de resistência. Mas vimos com o tempo que qualquer filme capaz de espelhar a inquietude de seus diretores é autoral. 'Star Wars' é um filme de autor, por exemplo".

Por Locarno, serão exibidas ainda promessas de polêmica ("My Neighbor Adolf", de Leon Prudovsky) e produções com pinta de sucesso popular ("Une Femme de Notre Temps", de Jean Paul Civeyrac). Flertando com o melodrama, a partir de uma retrospectiva do diretor alemão Douglas Sirk (1897-1987), realizador de "Imitação da Vida" (1959), a programação arquitetada por Giona para Locarno inclui uma série de tributos, além da homenagem a Costa-Gavras. No rol de homenageados estão: a realizadora Kelly Reichardt, a compositora e artista visual Laurie Anderson, o ator Matt Dillon, o produtor Jason Blum.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.