Cinema | Uma voz para o alto e avante

Talento da dublagem brilha em ‘Cherry’, cult da Apple TV

Por

Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã

Atual detentor do uniforme do Homem-Aranha, o inglês Tom Holland, de 24 anos, passou o fim de semana colhendo elogios por seu visceral desempenho em “Cherry”, produção lançada sexta-feira na Apple TV, centrada na desordem traumática de um ex-combatente da Guerra do Iraque que se afoga em drogas das mais variadas covalências químicas, em seu regresso aos EUA.

Mas não foi só Holland que lucrou adjetivos dos mais entusiasmados com o novo filme dos irmãos Joe e Anthony Russo: com ele, seu dublador, Wirley Contaifer, passou para o panteão dos titãs da voz, na arte da versão brasileira, graças a seu desempenho ao adaptar as falas do astro britânico para a língua portuguesa.

Ele já havia impressionado antes, ao dublar Ansel Elgort em “Homens, Mulheres e Filhos” (2014), mas superou-se agora. Aos 30 anos, nascido, criado e residente em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Wirley é, hoje, uma garantia de renovação de talentos na dublagem nacional, dono de um estilo particularíssimo de atuar. Ele sabe, como poucos, dar modulação à sua projeção vocal, reduzindo os graves, domando os agudos, costurando sua projeção com uma reflexão crítica de seus diálogos.

Na jovem guarda de seu ramo, ele é um sinônimo de excelência, que trabalha com a sabedoria de saber deixar se impressionar com a forma de atuar de seus “bonecos”, ou seja, os astros que habitualmente dubla. O que mais lhe surpreende em Holland é o fato de este “estar no tênue território entre o brando e o bravo, estando presente nos dois modos ao mesmo tempo”.

“Tom evidencia de maneira natural a sua sede por mais e o quanto mais ele quer estar mais à frente do último lugar em que pisou”, avalia Wirley. “Tenho isso comigo: uma necessidade de evolução na doação plena de tudo de nós pras oportunidades que temos. Anda ‘em linha’ com isso o fato de que, ao longo dos cinco anos nos quais sou voz para Tom Holland no Brasil, estou falando para pessoas que passaram a andar comigo, em atenção inicial ao que fiz como seu dublador. O trabalho do artista é herança pra toda gente. Por essa razão, que viva e sobreviva o melhor de nós! Indiscutivelmente, o que mais me impressiona na atuação de Tom é a sua capacidade elástica de se tornar o que precisa e o compromisso de não desperdiçar as linhas de suas falas, numa dosagem precisa de sentimento aplicada a tudo o que diz”.

LIÇÕES ESSENCIAIS

Na ativa desde maio de 2005 (“Comecei com Ricardo Schnetzer, no estúdio Audio Corp, sendo voz integrante do longa-metragem ‘Cruzada’, de Ridley Scott”, conta), Wirley debutou na arte de dublar antes de ter completado 15 anos. Atribui a colegas de talento GG como Christiano Torreão, Dario de Castro e Pietro Mario (morto em 2020) lições essenciais à sua formação. E levou os bons exemplos de seus mestres para as bancadas onde dublou (muito bem) o Michelangelo de “As Tartarugas Ninja” (2014) e o Monstro Hormonal da série “Big Mouth”.

“Wirley tem uma vontade grande de fazer perfeito”, elogia o decano da dublagem Mario Jorge, voz habitual de Eddie Muphy no Brasil. “Ele é um ótimo garoto”. Prestes a voltar às telas na distopia “Mundo em Caos”, Holland vive hoje uma fase de apogeu profissional em Hollywood, não apenas pela produção de seu terceiro longa como Peter Parker mas sobretudo pela boa acolhida a “Cherry”. No filme dos manos Russo ele mergulha no inferno do vício, numa narrativa digna de videoclipe.

“Enxergo Holland tendo entre dentes o esforço de quem escalou a montanha que tinha a seus pés. Ele está em um dos lugares mais altos em que poderia se manter, considerando seu nível de atuação nesse filme, o ‘Cherry’. É a ruptura imediata do ‘bom-mocismo’. É o extremo oposto do Homem-Aranha. Tendo esse carimbo de tinta permanente desenhado em sua carreira, essa ruptura cria uma fenda que expõe a visceralidade de sua capacidade e o direciona a um degrau acima, mostrando que ele pode e sabe sair do lugar, ‘para o alto e avante’. Acho que o maior desafio na minha vez de dublar o ‘Cherry’ foi ao subir nessa montanha-russa”.