Numa conversa por telefone, Silvio Tendler explica os critérios dessa retrospectiva e adianta detalhes sobre o filme sobre Leonel Brizola, gestado em sua produtora.
O título da retrospectiva promove uma provocação essencial em relação à longevidade do arquivo, do registro de época, além de demarcar a sua identidade como pesquisador da História. Qual é a busca estética dessa sua curadoria?
Silvio Tendler: Só escolhi filmes corajosos que nos ajudaram a olhar pra frente. Olhar para eles, agora, é uma forma de avançar. Vivemos um período de assassinato da memória, na qual ela vem sendo substituída por novas narrativas, como se todos os registros do ontem fossem falsos e tudo fosse espaço para uma recriação. Passei por uma operação no coração que não teria sido possível se não fosse o histórico de descobertas feitas pela Medicina. O conhecimento do passado é essencial para o futuro. A vida não é uma folha em branco. Desde que saímos do útero, estamos rodeados de informação sobre o que veio antes. A partir delas, a gente cria.
Qual é o seu maior temor em relação ao revisionismo?
Quando eu estava preparando a peça "Olga e Luiz Carlos - Uma História de Amor" (de 2023), eu me aproximei da Inteligência Artificial e solicitei a esse programa de computador um texto sobre o futuro. Ela me respondeu que o socialismo viria, mas me apresentou uma proposta com vocabulário inadequado, sem citar o nome de Stalin. Descobri que o stalinismo não foi citado pois a IA não pode falar de ditadores. O problema é que, na História, não podemos fazer uma crítica a regimes ditatoriais sem conhecer o que eles foram. O que eu aprendi é que a IA é manipulada por humanos, logo, por isso, ela também tem ideologias. Hoje, ao analisar os debates sociais do momento, é um olhar sobre o passado mediado por questões pessoais dos debatedores. Venho de uma geração libertária. Eu preciso me relacionar objetivamente com os materiais históricos e, a partir deles, criar uma dialética.
O filme desta segunda-feira, "Os Homens Que Eu Tive", de Tereza Trautman, é um marco da luta feminista em nossas telas. Qual é o simbolismo dele no seu recorte curatorial?
Eu queria muito mostrar a coragem que a Tereza teve em plena ditadura militar e mostrar para as pautas identitárias do presente o quanto o filme dela foi essencial para a luta das mulheres. Ela trouxe uma perspectiva libertária, com a mulher em foco.
De que maneira essa mostra redesenha o papel da Casa de Rui Barbosa no Rio de Janeiro, como aparelho de cultura?
Esse mérito não é meu e, sim, do Alexandre Santini, um amigo de muitos anos e colaborador, que me procurou querendo potencializar o lado cultural da Casa. Estamos falando de um espaço que conta com alguns dos acervos mais importantes para a memória do país. Além da exibição dos filmes que propus, estão acontecendo atividades culturais paralelas por lá.
Seu novo filme, "Brizola, Anotações Para Uma História", estreia no Festival do Rio. O que esperar dessa investigação sobre as lutas políticas de Brizola?
Quero propor uma nova abordagem política dele. Tive poucos encontros com Brizola e nunca fui brizolista, mas tenho respeito por ele. É por isso que eu aceitei esse projeto, pois só faço filmes do que eu não sei, para conhecer os personagens. Nesse documentário, eu tento quebrar paradigmas de seus antagonismos. Em seu governo no Rio, Brizola impôs que polícia não entra em favela chutando porta de barraco. É uma trilha essencial para entender o pensamento social dele.
Paralelamente à estreia do .doc, o senhor desenvolve um projeto sobre a questão da fome no país. Sua produtividade é imparável, mesmo diante de um quadro de achatamento de público nas salas de exibição, nas sessões de filmes nacionais. O senhor segue acreditando na força do cinema, mesmo com esse esvaziamento e o boom do streaming?
Desde criança, ouço essa história de que uma mídia vai acabar com a outra, sem que isso se concretize. Quando a TV chegou, falaram que o rádio ia chegar ao fim e ele está aí. Falaram o mesmo do cinema, com o boom da produção televisiva, e ele está aí. Estou fazendo filmes para cinema em 2024! A História provou que as camadas criativas da arte vão se superpondo e vão convivendo. Estamos num período de ajuste. Não tenho medo da desaparição do cinema, assim como eu não tenho medo da grande indústria midiática, mesmo que eu tenha de passar meus filmes em guetos. Um dos meus trabalhos recentes, "O Veneno Está Na Mesa", circulou tanto por palestras, por salas de aula, por sessões online que já deve contabilizar cinco milhões de espectadores, mais do que muito filme alcança na Netflix. Daqui a uns dez anos, quem quiser mapear a política neste país em colégios ou universidades, em aulas de História, vai exibir "Brizola, Anotações Para Uma História". Eu vou seguir sendo visto, com meu cinema, só que em outras formas de exibição. Basta ver que "Anos JK", um longa dos anos 1980, é exibido até hoje. A cada efeméride, meus filmes voltam.