Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

O testamento de Godard

Godard: 'Palavras não são um sinônimo de linguagem, pois linguagem é algo além' | Foto: Divulgação

Presente no streaming na grade da plataforma MUBI com "Adeus à Linguagem" (2014) e "O Livro de Imagem" (Palma de Ouro Especial de 2018), o suíço nascido em Paris Jean-Luc Godard (1930-2022) ambicionava fazer de sua morte um espetáculo - e um ponto continuativo - ao optar por serenar, aos 92 anos, num suicídio assistido.

À época, ele confessou estar cansado do excesso de informações do mundo. Mas o cansaço não impediu que ele deixasse heranças para a cineflia mundial, entra elas um filme inédito, finalizado postumamente: "Scénarios". Sua primeira exibição acontece na mostra Classics do Festival de Cannes, que começa no dia 14.

É uma experimentação semiológica de 18 minutos, concluída na véspera de ele morrer, há dois anos. Acompanha o projeto um vídeo de 34 minutos no qual o próprio Godard apela para uma mixagem de arquivos a fim de deixar instruções acerca do modo como "Scénarios" deveria ser terminado e exibido.

Ano passado, a Croisette exibiu um filme surpresa, de 20 minutos, construído por Godard, nos últimos meses de sua vida, a partir de uma colagem de imagens, chamado "Drôles de Guerres". Seus colaboradores habituais, Fabrice Aragno, Nicole Brenez e Jean-Paul Battagia finalizaram o curta de 20 minutos, autoclassificado como "o trailer de um filme que jamais existirá" e definido como um ensaio sobre a overdose de signos que a internet deposita sobre nós, a cada segundo.

Ainda em 2023, o realizador de "Acossado" (Prêmio de Melhor Direção na Berlinale, em 1960) ganhou postumamente uma série de projeções de gala de seu cult "O Desprezo", na comemoração de seus 60 anos.

"Palavras não são um sinônimo de linguagem, pois linguagem é algo além, é um conjunto de procedimentos de como empregamos signos. O problema é que as pessoas articulam esses signos sem a coragem de fantasiar o que aconteceria se as convenções fossem usadas de outra maneira", disse Godard ao Festival de Cannes de 2018, pouco antes de receber uma Palma de Ouro Honorária por "Imagem e Palavra", seu derradeiro longa-metragem (em vida), que hoje pode ser visto no www.mubi.com.

Essas palavras ditas por ele à Croisette não se enquadraram num processo convencional de entrevista, ao vivo. Ele falou com Cannes de seu escritório, na Suíça, usando Facetime, num papo em que elogiou a herança cultural de entrevistados da Rússia, de Portugal e do Brasil e lamentou o fato de todos falarem em Inglês. "Quem nasce na Itália é italiano. Quem nasce na China é chinês. Quem nasce na França é francês. Mas quem nasce nos Estados Unidos leva o gentílico de americano. A onipotência deles é tanta que eles não levam o nome do país e, sim, do continente", disse o cineasta numa coletiva de imprensa nos anos 1990.

No império do efêmero que o mundo midiático virou sob o garrote das fake news, o cineasta franco-suíço responsável por injetar poesia na semiologia, saiu de cena fazendo de sua partida um espetáculo transgressor, desafiando o Tempo, deixando como legado 118 filmes (entre curtas e longas) e mais 12 produções para a TV (entre séries e especiais). Segundo familiares e amigos próximos, entre eles, a mulher do diretor, a cineasta e produtora suíça Anne-Marie Mieville, sua morte foi uma opção diante do desgaste que sentia. Levando-se em conta que há ainda anotações dele prontinhas para que Anne-Marie e seus parceiros, Aragno e Battagia, deem partida a novos filmes. Tudo indica que vem mais coisa de Godard por aí.