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Paulo-Roberto Andel: 60 anos de nojo de 1964

Tanques em Brasília - 1964 | Foto: Reprodução

Eu não aprendi sobre a ditadura imunda na TV, nem nos livros. Só a posteriori. Eu a vivi dentro da minha casa, desde que nasci, e até hoje carrego sequelas irrecuperáveis dela. Aos oito dias de vida, fui carregado por minha mãe desesperada. Ela saiu correndo de casa depois que soldados foram à nossa casa para prender meu tio, um jovem estudante de 23 anos. Um simples tropeço da minha mãe na rua, também uma jovem de 23 anos, teria sido a minha morte.

Tempos depois, novamente para prender meu tio, a ditadura simplesmente deteve meu pai para usá-lo como refém. Desesperado, o irmão se entregou. Nunca fez mais do que reuniões no Partido ou panfletar contra a ditadura em passeatas, mas ditadores são assim: covardes. Prenderam-no, deram-lhe o abominável "telefone" e lhe tiraram uma das audições. Não aguentando mais, um garoto que tinha sido criado em colégio interno, órfão, virou um jovem humilhado que teve como única saída o exílio. Nunca mais voltou. As sequelas da ditadura contribuíram para seu suicídio, anos mais tarde.

Deprimido, aos poucos meu pai caiu no alcoolismo e isso nos provocou uma tragédia familiar e econômica que jamais superei. Só parou de beber quando não pôde mais andar, e isso foi o que lhe deu uma sobrevida de 13 anos. Minha mãe sofreu demais. Jovem ainda, passou a ter vários problemas de saúde que abreviaram sua vida. Faleceu com 61 anos, mas uns 100 de sofrimento.

Além de destruir a harmonia da minha família, a ditadura ainda me expulsou de uma escola no jardim da infância. Numa excursão até à Praia Vermelha, simplesmente perguntei à Tia Diva porque a praia tinha aquele nome. Perto dela, estavam dois senhores de farda. Nunca me esqueci do olhar odioso que me dirigiram por uma pergunta da criança. Psicopatas, queriam saber quem era a criança de "traço comunista". Foram à escola, pegaram meu nome, encontraram o do meu tio, avisaram que eu deveria ser expulso para não contaminar as outras crianças. A diretora recebeu minha mãe e, chorando, comunicou minha expulsão. Uma semana depois, eu estava em outro colégio, sem saber de nada.

Ah, muito provavelmente foi a ditadura que sumiu para sempre com a Lúcia, que era minha babá em 1973. Morávamos uma temporada bem no Largo de Cascadura. Ela desceu para comprar pão e nunca mais voltou. Meus pais desesperados foram em delegacias, hospitais, no IML, choravam o tempo todo, eu vivi aquela agonia. Isso tem 51 anos. Sou o único sobrevivente daquela casa. Nunca mais tive sinal de Lúcia. E por que teria sido a ditadura? Simples: porque naqueles anos e nos seguintes as pessoas simplesmente "sumiam" para sempre, num tempo em que o tráfico e a milícia engatinhavam.

E que ninguém seja ingênuo: houve muita corrupção. Muita. Essa é a principal motivação de todo golpista. Só verdadeiros otários acreditam nesse discurso de pátria, família e religião - é melhor trocar por hipocrisia, desfaçatez e corrupção.

A você, que tolera ou defende isso, pense que as pessoas mutiladas, estupradas e covardemente assassinadas poderiam ser suas próximas, ou até da sua família. A ditadura começa eliminando seus alvos prioritários, depois ataca qualquer um. E se você vê algo parecido com a milícia e o tráfico, isso está longe de ser mera coincidência.

 

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