Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Lavoura Lispector

No set de filmagens, Luiz Fernando Carvalho dirige Maria Fernanda Cândido em 'A Paixão Segundo GH' | Foto: Divulgação

Foi uma adaptação de "Homens Querem Paz", de Péricles Leal, feita em planos-sequência para a "Terça Nobre", que transformou Luiz Fernando Carvalho num farol de invenção no espaço mais industrial do audiovisual: a TV Globo. O diretor permaneceu lá por lá anos a fio, presenteando a emissora - mas de olho no Brasil - com pérolas como "Rei do Gado" (1996), "Os Maias" (2001), "Hoje É Dia De Maria" (2005), "A Pedra do Reino" (2007), o antológico "Capitu" (2008), "Afinal, O Que Querem As Mulheres" (2010); "Meu Pedacinho De Chão" (2014), "Velho Chico" (2016) e "Dois Irmãos" (2017).

No meio do caminho, fez um filme... e que filme!... por muitos considerado "A" obra-prima do cinema nacional do século XXI: "Lavoura Arcaica", baseado na obra-prima literária de Raduan Nassar. Diz sempre que aquele livro o encontrou. Um encontro de alma também se deu com "A Paixão Segundo GH", escrito em 1964 por Clarice Lispector (1920-1977), que marca o regresso de Luiz Fernando às telonas, em 11 de abril. Maria Fernanda Cândido tem a atuação de uma vida vivendo uma mulher que é muitas, tantas, todas, atomizada, implodida e reconfigurada após se deter diante da imagem de uma barata esmagada.

 

Processo impresso e consagrado

Em paralelo ao regresso de Luiz Fernando Carvalho às telas, a editora Rocco abrilhanta as livrarias de todo o país com os bastidores do processo criativo do cineasta, chamado "Diário De Um Filme: A Paixão Segundo GH". Em primeira pessoa, a roteirista do longa, Melina Dalboni, revive a jornada de realização desse diálogo com Clarice Lispector e revela o atravessamento emocional de todos da equipe e do elenco pelo modo transcendente com que seu realizador trabalha.

Nessas cativantes anotações, Melina conduz o leitor em um mergulho no percurso criativo do cineasta a partir da obra de Clarice e se depara com as circunstâncias externas, pessoais ou não, que afetam uma filmagem. Na segunda parte, são reproduzidas as transcrições das Oficinas Teóricas, ponto de partida para todos os trabalhos de Carvalho, realizadas para a equipe na fase de pesquisa e ensaios.

Pelo tablado do Galpão, espaço criativo idealizado pelo cineasta, passaram faróis da intelectualidade como Nádia Battella Gotlib, José Miguel Wisnik, Yudith Rosenbaum, Franklin Leopoldo e Silva, Rafaela Zorzanelli e Flávia Trocoli - todos estudiosos e especialistas na obra de Clarice, o que transforma as palestras transcritas na publicação em escritos inéditos para os estudiosos e admiradores da obra da autora. Acompanham os textos, reproduções dos cadernos do cineasta, frames do filme e fotografias dos bastidores das filmagens. (R.F.)

Luiz Fernando Carvalho: 'Palavra é um corpo xamânico. O que eu faço num filme é autopsia em corpo vivo'

Luiz Fernando Carvalho, cineasta | Foto: Divulgação

O Festival de Roterdã levou "A Paixão Segundo GH", Maria Fernanda Cândido, Luiz Fernando Carvalho e sua equipe para a Holanda, onde foram saudados com uma apaixonada reação do público. O filme é um cult instantâneo. Na entrevista a seguir, Luiz Fernando se eviscera para o Correio da Manhã para explicar que Clarices carrega consigo.

Em Portugal, "A Paixão Segundo GH" completa seis semanas em cartaz. Em Roterdã, o elogio ao filme parecia um coro. Que desenho o um filme que parece "pequeno", em medidas orçamentárias, agiganta para o mundo?

Luiz Fernando Carvalho: O que parece "pequeno" pelo orçamento muda de forma quando exibidores de locais do Brasil que não estavam previstos no nosso cronograma de estreias inicial nos pede o filme. Estamos indo para praças que não imaginava. Na época do "Lavoura Arcaica", a Riofilme tinha pouquíssimas cópias para rodar o Brasil todo. Agora, recebemos a excelente notícia da permanência no Cine Trindade, de Portugal, que é uma sala incrível. Em Roterdã, a organização me chamou e disse: "Seu longa é um filme de público", baseada no fato de que as sessões estavam lotadas... todas... e as pessoas precisavam ser quase enxotadas dos bate-papos ao fins das projeções, porque elas queriam ficar ali, falando, falando, falando. Há exibições agora em festivais na Argentina e na França.

Que centelha de melodrama "GH" carrega, a julgar que você fez parte de sua carreira no templo do folhetim: a TV?

Uma pitada de melodrama faz bem a qualquer obra e, no caso da Clarice, mesmo quando ela é mais irônica ou mais trágica, percebemos traços do gênero em seus contos, em "A Hora da Estrela", em sua voz de judia ucraniana. Não tem fórmula a "medicação" literária que ela nos oferece, em sua prosa, mas pode ser perigoso manipular seus componentes, pois ela nos dá indícios de libertação. Conectar-se com ela é tangenciar a condição feminina da luta por liberdade... não panfletária... da opressão masculina.

Em Roterdã se dizia que este é seu trabalho mais "silencioso". O que um diretor que sempre conduziu a palavra literária às telas faz do silêncio?

Eu reivindico a a palavra como elemento central do meu cinema sem hierarquia entre ela e a imagem. Silêncios são entidades repletas de eloquência. São uma forma particular de som no meio daquela feitiçaria que há na Clarice. O contraponto ao silêncio há de ser um ruído ou o brotar de uma palavra. Mas observe o que há nessas palavras de Clarice, a força delas. É o que observávamos quando Raul Cortez falava as palavras de Raduan Nassar em "Lavoura Arcaica". Palavra é um corpo xamânico. O que eu faço num filme é autopsia em corpo vivo, para lidar com a substância poética que chamamos de vida.

Existe uma "família" Luiz Fernando em sua "Luizlândia", digo, em sua obra, formada por estrelas e astros de vasta parceria com você, como Osmar Prado, Eliane Giardini, Antônio Fagundes e... Maria Fernanda Cândido. Que ponto de maturidade em sua jornada de sucesso - com passagens pela Itália de Marco Bellocchio, no filme "O Traidor", e pela franquia "Harry Potter" -, ela demonstra em "GH"?

Sempre encorajei meus elencos para que eles saíssem da tutela e fossem coautores da coisa, comigo, com a equipe. É pela cumplicidade que a arte que eu faço alcança a cumplicidade do outro. Maria é coautora e se oferenda ao "GH" com enorme grau de confiança. Ela desconstrói o monólogo e carrega um pouco de toda a minha plêiade de atrizes consigo. É uma única, que faz várias.

Falando de barata... como não pensar na de (Franz) Kafka, em "A Metamorfose"? O que existe de kafkiano em "A Paixão Segundo GH"?

Kafka entra geracionalmente, foi eu converso com uma série de escritores, até os de ficção científica, como H.P. Lovecraft e Edgar Allan Poe. A barata, aqui, é um signo latente de muita coisa, além de sua condição de inseto. É até o feminino que é cortado na altura do ventre. A partir dela, eu devasso a tradição da casta burguesa e questiono a estabilidade social da personagem de Maria Fernanda.

 

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