O Festival de Roterdã levou "A Paixão Segundo GH", Maria Fernanda Cândido, Luiz Fernando Carvalho e sua equipe para a Holanda, onde foram saudados com uma apaixonada reação do público. O filme é um cult instantâneo. Na entrevista a seguir, Luiz Fernando se eviscera para o Correio da Manhã para explicar que Clarices carrega consigo.
Em Portugal, "A Paixão Segundo GH" completa seis semanas em cartaz. Em Roterdã, o elogio ao filme parecia um coro. Que desenho o um filme que parece "pequeno", em medidas orçamentárias, agiganta para o mundo?
Luiz Fernando Carvalho: O que parece "pequeno" pelo orçamento muda de forma quando exibidores de locais do Brasil que não estavam previstos no nosso cronograma de estreias inicial nos pede o filme. Estamos indo para praças que não imaginava. Na época do "Lavoura Arcaica", a Riofilme tinha pouquíssimas cópias para rodar o Brasil todo. Agora, recebemos a excelente notícia da permanência no Cine Trindade, de Portugal, que é uma sala incrível. Em Roterdã, a organização me chamou e disse: "Seu longa é um filme de público", baseada no fato de que as sessões estavam lotadas... todas... e as pessoas precisavam ser quase enxotadas dos bate-papos ao fins das projeções, porque elas queriam ficar ali, falando, falando, falando. Há exibições agora em festivais na Argentina e na França.
Que centelha de melodrama "GH" carrega, a julgar que você fez parte de sua carreira no templo do folhetim: a TV?
Uma pitada de melodrama faz bem a qualquer obra e, no caso da Clarice, mesmo quando ela é mais irônica ou mais trágica, percebemos traços do gênero em seus contos, em "A Hora da Estrela", em sua voz de judia ucraniana. Não tem fórmula a "medicação" literária que ela nos oferece, em sua prosa, mas pode ser perigoso manipular seus componentes, pois ela nos dá indícios de libertação. Conectar-se com ela é tangenciar a condição feminina da luta por liberdade... não panfletária... da opressão masculina.
Em Roterdã se dizia que este é seu trabalho mais "silencioso". O que um diretor que sempre conduziu a palavra literária às telas faz do silêncio?
Eu reivindico a a palavra como elemento central do meu cinema sem hierarquia entre ela e a imagem. Silêncios são entidades repletas de eloquência. São uma forma particular de som no meio daquela feitiçaria que há na Clarice. O contraponto ao silêncio há de ser um ruído ou o brotar de uma palavra. Mas observe o que há nessas palavras de Clarice, a força delas. É o que observávamos quando Raul Cortez falava as palavras de Raduan Nassar em "Lavoura Arcaica". Palavra é um corpo xamânico. O que eu faço num filme é autopsia em corpo vivo, para lidar com a substância poética que chamamos de vida.
Existe uma "família" Luiz Fernando em sua "Luizlândia", digo, em sua obra, formada por estrelas e astros de vasta parceria com você, como Osmar Prado, Eliane Giardini, Antônio Fagundes e... Maria Fernanda Cândido. Que ponto de maturidade em sua jornada de sucesso - com passagens pela Itália de Marco Bellocchio, no filme "O Traidor", e pela franquia "Harry Potter" -, ela demonstra em "GH"?
Sempre encorajei meus elencos para que eles saíssem da tutela e fossem coautores da coisa, comigo, com a equipe. É pela cumplicidade que a arte que eu faço alcança a cumplicidade do outro. Maria é coautora e se oferenda ao "GH" com enorme grau de confiança. Ela desconstrói o monólogo e carrega um pouco de toda a minha plêiade de atrizes consigo. É uma única, que faz várias.
Falando de barata... como não pensar na de (Franz) Kafka, em "A Metamorfose"? O que existe de kafkiano em "A Paixão Segundo GH"?
Kafka entra geracionalmente, foi eu converso com uma série de escritores, até os de ficção científica, como H.P. Lovecraft e Edgar Allan Poe. A barata, aqui, é um signo latente de muita coisa, além de sua condição de inseto. É até o feminino que é cortado na altura do ventre. A partir dela, eu devasso a tradição da casta burguesa e questiono a estabilidade social da personagem de Maria Fernanda.