Por: Rodrigo Fonseca (Especial para o Correio da Manhã)

Marcus Faustini,do Cesarão para as telas

Faustini dirige 'Ana' em concurso no Festival do Rio | Foto: Divulgação

 

Requentando uma panelada de arroz com lentilha, num papo com o Correio da Manhã, Marcus Vinícius Faustini evoca Ícaro, o sonhador grego que voou à força de asas postiças, até vê-las arder ao calor do Sol, levando-o a uma queda mortal. O mito é uma metáfora para o deslumbramento inerente à pratica sem consciência da atividade artística, movida só pela vaidade em vez da transcendência.

Desde os anos 1990, quando peças teatrais como "Capitu" puseram seu nome em evidência nas artes cênicas, o diretor carioca egresso do Cesarão, em Santa Cruz, sempre se manteve atento ao espocar dos holofotes, para que o brilho deles não condenassem seu voo a uma queda.

Trabalhou sempre atento à máxima de Guimarães Rosa: "Viver é muito perigoso". Seguiu ainda o conselho de um amigo quitandeiro (cinéfilo) de Bonsucesso, que lhe mostou "O Espantalho", de Jerry Schatzberg (Palma de Ouro de 1973) e sugeriu que prestasse atenção ao cinema americano dos anos 1970, para descobrir meios de fazer uma poesia que fosse realista e pop. Carrega consigo também uma dica aprendida nos versos de Manuel Bandeira, de que "sofrer por amor por mais de três dias é deselegante". Com isso tudo na cachola, Faustini montou espetáculos de linha política ("O Filho do Presidente"), saudou suas origens com um livro cult ("O Guia Afetivo da Periferia", também transformado em peça) e fez uma série de ações sociais. Rodou filmes ("Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha" e "Vende-se Esta Moto"). Engendrou a Agência de Redes Para a Juventude, que formou gerações de jovens egressos de comunidade.

Fez uma gestão histórica como Secretário de Cultura, em Nova Iguaçu, no fim dos anos 2000, criando uma escola de cinema na Baixada. Em 2021, assumiu o mesmo posto num Rio de Janeiro fustigado pela pandemia, onde exerceu seu cargo (até janeiro) numa lógica democrática de inclusão como nunca se viu igual nesta metrópole, no esforço de preservação dos aparelhos culturais locais, abrindo-os para outras malhas da sociedade, sempre invisibilizadas. O Ícaro Faustini não se encanta pelo astro rei, mas, sim, pela resiliência. É dela que ele vai falar, neste Festival do Rio, em "Ana", longa-metragem com fôlego de arrebatar miocárdios. Mistura de "O Grande Momento", de Roberto Santos, com Ken Loach, a trama lembra "Rocco e Seus Irmãos" ao retratar o laço de fraternidade entre uma passeadora de cães (Priscila Lima, no que promete ser uma daquelas atuações de chapar o coco) e um jovem que se prepara para um show drag (Gustavo Luz, descrito como "A" promessa deste ). Vinícius Oliveira, o guri de "Central do Brasil" (1998), dá em cena a atuação mais deslumbrante de sua carreira, numa síntese da rascância da vida sub-urbana.

Tem sessão do longa nesta quinta-feira (12), às 17h, no Estação NET Gávea, e na sexta, 10h30, no Odeon.

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Marcus Vinícius Faustini: 'O cinema é um desses óculos mágicos e poderosos que pode nos levar além', afirma Marcus Vinícius Faustini

Artista gestado na periferia carioca, o realizador Marcus Vinícius Faustini repassa sua trajetória, aprofunda a discussão sobre seu longa "Ana" e joga foco sobre os desafios da arte independente no Brasil. Confira a entrevista abaixo.

A que tradição do realismo social o seu "Ana" se filia e de que forma ele expande uma dramaturgia de laços com a sociologia que você persegue desde o teatro, nos anos 1990?

Marcus Vinícius Faustini: Eu diria que o "Ana" se filia a uma tradição de cinema independente que busca dar vida nas telas a personagens das classes menos favorecidas da sociedade e que vivem suas vidas marcadas pela experiência de circularem nas cidades, em busca de trabalhos, de afetos… Eu tive que investir R$ 150 mil do próprio bolso para conseguir realizar o filme. Raspei o porquinho. Mas, como não sou herdeiro de nada, teremos que batalhar muito para recuperar esse recurso. Isto não é um ato heróico e nem um capricho pessoal, é uma visão de que este tipo de filme que valoriza personagens, e suas vidas nas cidades, precisam existir. É um ato político, empreendedor e artístico. Isso tudo só foi possível também por conta das parcerias que tive no filme, desde o produtor Cavi Borges - mago do fazer independente - até a equipe criativa e elenco. Acredito que um filme que valoriza personagens pode ser fundamental em uma nova comunicação que ajude a re-tecer o fragmentado tecido social brasileiro. Esse tipo de filme precisa existir. É assim que ampliamos os horizontes.

De que forma o seu cinema assume a cidade como personagem, a se julgar o fato de que a metrópole de onde parte - o Rio de Janeiro - vem sendo limitada, nas telas, historicamente, a um recorte situado na Zona Sul, sem atenção às periferias?

Essa hierarquização que valoriza imagens e vidas de partes mais favorecidas das cidades faz a indústria criativa do audiovisual deixar de produzir muitos conteúdos que poderiam aumentar os laços do nosso cinema com o público, além de ser um pacto perverso com a desigualdade escandalosa da sociedade brasileira. Precisamos olhar através dos olhos de personagens que vivem outras realidades, mas que convivem na mesma cidade que nós. O cinema é um desses óculos mágicos e poderosos que pode nos levar além. Quando faço cinema, teatro, literatura e até gestão de projetos sociais, sou profundamente marcado pelas questões sociais que acontecem nas grandes cidades. Cidades, seus personagens e questões sociais dizem respeito à minha experiência de vida, mas também é algo presente em todas as realizações culturais, artísticas e sociais que já me envolvi ou liderei. "Não é viagem", como diria Sabotage.

Cineastas bastante diversos como o malaio radicado em Taiwan Tsai Ming-liang ("O Sabor da Melancia") e Marcelo Piñeyro ("Plata Quemada") moldaram a sua forma de olhar a realidade, o tempo e o espaço. Mas onde (e como) a poesia de um e a aspereza do outro te amparam em "Ana"?

Ana vive em uma região do subúrbio onde alguns vizinhos perseguem seu irmão Diego, que está descobrindo a cultura drag. Ela, chegando perto dos 30, trabalha em bicos, sendo passeadora de cachorros na Zona Sul. Tenta cuidar do irmão, pois a mãe morreu recentemente. Tem um casal de amigas feministas que a colocaram na terapia. Tem um namorado disfuncional. Aprende coisas sobre si ao longo do filme e enfrenta adversidades e perigos urbanos. Diante desses eventos, o filme propõe um olhar sobre como a delicadeza está sob pressão permanente da dureza da realidade. E não tem outro caminho, não tem fuga. É daí que temos que nos reinventar.

Você lança seu filme num festival que te serviu de espaço de formação, que te deu a vitine da mostra Novos Rumos em sua longa de ficção de estreia: "Vende-se Esta Moto". O que o Festival do Rio traz de mais signifiativo para a sua forma de pensar o cinema e de se pensar no cinema?

Marcus Vinícius Faustini: Lançar o "Ana" na Premiere Brasil de Longas de Ficção é a realização de um sonho de menino. Cresci na periferia e sempre desejei fazer cinema, mas, ali nos anos 1980, não existiam políticas públicas que garantissem acesso ao ensino de cinema, de produção e realização audiovisual, nessas regiões. Fui escrever literatura porque só precisava da minha cabeça. A partir daí, fui fazer escola de teatro pra ganhar método, e isso mudou tudo. Aprendi a realizar... e cooperar. Durante muitos anos, as edições do Festival do Rio foram para mim a oportunidade de ver filmes diferentes e ampliar meu repertório. Certamente, viver a realização de ver o "Ana" no Festival do Rio é um dos momentos mais alegres da minha vida. Sou grato ao garoto que fui. Ele me trouxe até aqui.