Por Rodrigo Fonseca
Especial para o Correio da Manhã
Dose dupla de Karim Aïnouz à vista, a partir da próxima quinta-feira. No dia 28, estreiam dois longas -metragens de matriz documental, com alma de ensaio, ambos centrados na Argélia, do cineasta cearense laureado com o Prix Un Certain Regard do Festival de Cannes de 2019 com "A Vida Invisível".
Um deles é de 2020, e nasceu na Berlinale daquele ano, dias antes de a pandemia ser decretada: "Nardjes A.". O filme é batizado com o nome de sua personagem, uma ativista argelina, cuja atitude combativa serve para o diretor fazer uma defesa da sabedoria feminina e da retidão dos jovens. Ao cruzar seu olhar com a jovem e inflamada militante, em meio à Revolução dos Sorrisos, em solo argelino, em 2019, o diretor de "Madame Satã" (2002) aplica um de seus filtros autorais: a atenção ao transbordamento de quem é visto como desviante. "Nardjes" é uma ferida aberta na moral de uma nação inquieta. Uma ferida de onde brotam as flores de uma juventude que não se deixa calar. Também existem flores no outro lançamento do cineasta: "O Marinheiro das Montanhas", projetado pela primeira vez em telas da Croisette, em 2021.
Sua comovente passagem pelo Festival do Cairo naquele mesmo ano - numa sala lotada de estudantes, anotando em seus caderninhos dados poéticos sobre a ponte afetiva entre a realidade argelina e o Brasil - ajudou a promover o filme na África, onde foca seu olhar.
Trata-se de uma espécie de inventário afetivo (de cicatrizes e de suspiros) de sua própria vida: "É um memoir de mim mesmo", diz o diretor, ao documentar a relação de amor entre seus país: a brasileira Iracema e Majid, um argelino. Eles se trombaram nos Estados Unidos, quando eram estudantes. Lá viveram uma love story parecida com as paixões de melodrama filmadas por Karim. Foram felizes até que Majid voltou pro seu país de berço, em 1965. Karim cresceu sem ele e só foi conhece-lo quando já tinha 20 anos. Iracema nunca mais se casou. Mas da memória do que foi vivido ficou uma caixa de slides. O longa nasce dessa caixa. E de uma jornada onde o diretor pegou um barco de Marselha e foi parar na Argélia, no vilarejo de onde seu pai vem, que é uma região montanhosa, onde neva. Sua mãe, que morreu em 2015, opera na narrativa como sendo uma espécie de companheira imaginária.
Este ano, Karim competiu pela Palma de Ouro de Cannes pela primeira vez, com "Firebrand", filme sobre a monarquia inglesa com Alicia Vikander e (um magistral) Jude Law, que vai ser exibido no Festival do Rio (5 a 15 de outubro). É a história de uma rainha, Catherine Parr, em sua relação conturbada com Henrique VIII. Sua abordagem libertária para o Velho Mundo é fruto do contágio provocado pelo par de longas que o diretor lança agora.
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