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'É Miúcha que vetoriza João e Chico'

| Foto: Divulgação/Festival do Rio

Na entrevista a seguir, os realizadores Liliane Mutti e Daniel Zarvos fala dessa ave canora e sua relevância na cultura brasileira.

Que poética vocês encontraram na música de Miúcha e na sua persona em palcos? Que detalhes as cartas e diários revelam de mais peculiares na cantora?

Liliane Mutti: A Miúcha tinha um star quality arrebatador. Quando ela falava, todas as atenções se voltavam para ela. Mas quando a vi cantar, num casamento a que fui convidada no interior da Franca, notei que ela cantava "Garota de Ipanema" com uma certa ironia. Logo lembrei de Ella Fitzgerald cantando "Boy from Ipanema" e me vi diante de uma personagem feminista e uma história não contada. Ao lermos as suas cartas e diários, vi que ali estávamos diante de um exemplo do "pessoal é político", frase muito repetida durante a segunda onda do feminismo, a década de 60, quando Miúcha conhece e se casa com João Gilberto.

Daniel Zarvos: É a poética que nasce da tristeza de uma profunda dor em ser, existir e na contradição de viver com ímpeto, no sopro do limite da vida. Miúcha - para quem a conheceu e pra quem conviveu com ela, como nós dois - irradiava energia, sua presença era um acontecimento. A gente sentia uma vontade de estar junto com ela e viajar com sua música, seu sorriso e seus acasos. No palco, ela acontecia, ela era um salto volante. Peculiar? Bem, nada mais normal do que ser "gauche" da vida.

O que cartas e diários simbolizam como dispositivo narrativo para o cinema documental? O que o dispositivo da leitura trouxe de mais enriquecedor para o processo documental?

Liliane Mutti: A Miúcha foi sujeito e mote da minha dissertação de mestrado na Universidade Federal Fluminense com a Sorbonne Nouvelle, no Departamento dos Estudos sobre América Latina. Ali, ficou claro para mim que, para uma mulher, mãe, artista, ser casada com um "gênio", em uma relação complicada, era também uma escolha. A Miúcha escolheu viver esse amor e pagar o preço dele, até o fim. Ela e João foram casados por quase dez anos e ele nunca soube o que estava escrito nos diários dela, ou nas dezenas de cartas enviadas ao Brasil, no período em que foram casados e vivem entre Cidade do México e NY. Esses textos escritos por ela, nos mostrou que a Miúcha era autora e compositora, além de ter desenhando aquarelas animadas no filme. Ela era uma artista completa: além de intérprete, foi também compositora, mas pouquíssimo gravada. Um rico documento guardado pelo pesquisador Geraldo Rocha nos permitiu ir ao "útero" dessa artista. Fico com a certeza que as personagens mulheres são o caldo que me interessa. As vaginas voadoras, desenhadas por Miúcha e animadas para o filme, dizem muito. Sangrando e dançando, vamos desconstruindo e subvertendo esse mundo masculino. É sempre luta, mas é agridoce também. Esse é um filme de um casal, feito por um casal, e, no fim, o que fica é que a luta do cinema é longa, mas o amor nos faz ir além.

Daniel Zarvos: As cartas e os diários revelam o íntimo, trazem para o presente os relatos do passado, e revelam muito da personagem. Nada mais real e imediato do que a escrita de cartas e diários, a angústia, os questionamentos, murmúrios e alegrias são revelados, por Miúcha no que ela descrevia como uma compulsão, uma necessidade de existir pela ação da escrita.

Onde e como Chico e João Gilberto vetorizam a figura de Miúcha? O que esses personagens satélites trazem para a narrativa?

Daniel Zarvos: Acho que é o contrário: é Miúcha que vetoriza João e Chico por meio do seu íntimo revelado no filme. Sem Miúcha, não teríamos João. A longevidade, o carinho e a reinvenção de João é fruto do encontro e do amor insaciável destes dois. Um choque carnal e intelectual, que os vai manter juntos por toda a vida. E Chico, bem, ela era a irmã mais velha, mais esperta, que olhava aquele "guri" e o protegia. Foi com ela os primeiros tragos, goles e acordes.

Liliane Mutti: Ah, o Chico compôs "Maninha" para Miúcha e ofereceu o show dele, "Samba", para ela. Precisa dizer algo mais? O João Gilberto, bem... O João morreu sem nunca saber o que a Miúcha sentia nesse lugar de "esposa". O filme traz os bastidores do "não-disco" e como ele agia, quando ela ia gravar no estúdio em Nova York. Posso apenas dizer que sem a Miúcha não existiria o "Disco Branco" de João, que é o predileto do Caetano. E possivelmente "João Gilberto no México", também não. Esse é o meu predileto. Vale revisitar esses dois discos para entender a relação entre esses dois gigantes. E ver o nosso filme, claro.