Por: Affonso Nunes

Essa Gente (nova) da antiga

Vidal Assis, Áurea Martins e André Gabeh revivem o clima de um dos álbuns de samba mais festejados da MPB | Foto: Leo Aversa/Divulgação

Áurea Martins, André Gabeh e Vidal Assis estreiam neste sábado (8) "Gente Nova da Antiga", espetáculo inspirado no disco histórico "Gente da Antiga" (1968), de Clementina, Pixinguinha e João da Baiana. Com entrada gratuita, o show inédito passa pelo circuito de arenas cariocas e pelo Centro da Música Carioca Artur da Távola, na Tijuca. Todas as apresentações terão tradução em Libras e programas de sala em Braille.

Com arranjos camerísticos e inéditos que ressaltam a beleza e atemporalidade das músicas de caráter afro-brasileiro que compõem o repertório do disco, o show homenageia o trio que, em suas respectivas carreiras, foi responsável por recuperar a memória da conexão africana na música popular. À época da gravação, Clementina tinha 65 anos, Pixinguinha 70 e João da Baiana 82, todos em pleno vigor criativo.

Clementina, Pixinguinha e João da Baiana transitaram com muita naturalidade entre a juventude de seu tempo e foram responsáveis pela transmissão de sua ancestralidade às gerações mais novas. "Gente Nova da Antiga" habita este lugar de afeto no encontro de uma das últimas matriarcas da música negra em atividade, Áurea Martins, de 82 anos, com dois dos melhores cantores negros da nova geração, Vidal Assis e André Gabeh.

"Eu tenho especial amor e respeito por essa arte assim pensada, que o tempo tratou de cristalizar. Acho que a velhice não apaga o essencial; pelo contrário, dá a coloratura exata e até dimensiona o verdadeiro artista", sintetiza Hermínio Bello de Carvalho, produtor musical do disco.

No repertório, as faixas "Yaô" (Pixinguinha e Gastão Viana), "Roxá" (domínio público), "Mironga de Moça Branca" (domínio público), "Batuque na Cozinha" (João da Baiana), "Que Querê" (João da Baiana, Donga e Pixinguinha) e "Fala Baixinho" (Pixinguinha e Hermínio Bello de Carvalho) se unem a canções que não estão no disco, mas que se conectam a elas, como "São Pixinguinha" (Emicida), "Coisa da Antiga" (Nei Lopes e Wilson Moreira), "Moro na Roça" (José Passos e Arnaldo Passos), "Ilú Ayê" (Norival Reis e Cabana), tecendo pontes entre ancestralidade e contemporaneidade.

Dirigido por Renata Grecco, o show tem banda formada pelos músicos Marcos Suzano (percussão e pandeiro), Mário Séve (sax e flautas) e Lui Coimbra (violoncelo, violão e rabeca) - este também diretor musical e arranjador.


 

Um álbum que resgatou a tradição do samba

João da Baiana, Pixinguinha, Donga e Clementina de Jesus em registro histórico | Foto: Reprodução

O histórico disco "Gente da Antiga" - gravado por Clementina de Jesus, Pixinguinha e João da Baiana quando os três já passavam dos sessenta e muitos anos - foi lançado em um período de grande efervescência cultural no Brasil, marcado pela ditadura militar e pela eclosão de movimentos como a Tropicália. Nesse contexto, "Gente da Antiga" representou um resgate da tradição do samba e uma exaltação da cultura popular. E como o samba é música de resistência, o disco deixou ensimentos valiosos para a juventude naqueles anos de chumbo.

Lançado pela extinta gravadora Odeon, o álbum é composto por 12 faixas, todas de autoria de Pixinguinha, com exceção de "Roxá" e "A Tua Sina", que são de domínio público. Este repertório do álbum é uma celebração da obra de Pixinguinha, um dos maiores compositores de samba de todos os tempos. O álbum apresenta clássicos como "Os Oito Batutas", "Yaô", "Roxá", "A Tua Sina", "Elizeth no Chorinho", "Que que re que que", "Mironga de Moça Branca", "Cabide de Molambo", "Batuque na Cozinha", "Ai Seu Pinguça", "Fala Baixinho" e "Estácio, Mangueira".

A interpretação das músicas ficou a cargo de Clementina de Jesus e João da Baiana, dois grandes nomes do samba. Clementina, com sua voz potente e marcante, e João, com seu estilo irreverente e cheio de ginga, deram vida às composições de Pixinguinha com maestria.

Clementina de Jesus surgiu como elo entre a moderna cultura negra e a África Mãe. Conhecida como "Quelé" ou "Rainha do Partido Alto", foi uma das mais importantes cantoras de samba do Brasil. Sua voz potente e seu carisma no palco a consagraram como uma das maiores intérpretes da música popular brasileira.

Nascida em Valença (RJ), Clementina teve infância difícil, trabalhando como empregada doméstica e lavadeira. O contato com o samba e com as tradições africanas, no entanto, sempre foi presente em sua vida. Aos 63 anos, foi descoberta pelo produtor musical Hermínio Bello de Carvalho, que a convidou para gravar seu primeiro disco. A partir de seu primeiro álbum, "Clementina de Jesus" (1964), sua carreira deslanchou e artista se tornou uma referência do samba de raiz e do partido alto. Faleceu em 1987, deixando um legado de 18 álbuns e participações em filmes e programas de televisão.

"A descoberta de Clementina de Jesus teve para a música brasileira uma importância que presumo corresponder, na antropologia, à do achado de um elo perdido. Estávamos em meados da década de sessenta, já bem distante de nossas raízes africanas. A escola de canto que prevalecia era a europeia, principalmente a italiana: nossos cantores e cantoras apresentavam-se com a voz polida, seja por estudos técnicos, que os transformavam em autênticos tenores (líricos ou dramáticos), barítonos, sopranos, etc..., seja por uma colocação mais espontânea, mas sempre refinada, civilizada", eescreveu o crítico musicall Ary Vasconcellos na revista Amiga, em 1987.

João da Baiana, nome artístico de João Machado Guedes, é considerado um dos pioneiros do samba. Nascido no Rio em 1887, era filho de uma baiana que vendia quitutes e comandava terreiros de candomblé na região central da cidade na região conhecida como Pequena África. Teve um papel fundamental na formação do samba como gênero musical. Ele foi um dos primeiros músicos a gravar sambas, e suas composições e seu estilo de tocar pandeiro ajudaram a definir o ritmo e a sonoridade do estilo. João fez parte do lendário grupo Oito Batutas, que incluia Pixinguinha e Donga. O grupo se apresentou em diversos locais no Brasil e no exterior, contribuindo para a divulgação do samba. João da Baiana faleceu em 1974, mas seu legado musical continua mais do que vivo. Suas composições são tocadas e regravadas por diversos artistas, e seu estilo únbico de tocar pandeiro inflnuenciou gerações de músicos.

Gênio incontestável, Pixinguinha foi instrumentista, compositor, orquestrador e maestro. Misturando valsas, polcas e modinhas com elementos afro-brasileiros e sonoridades rurais, Pixinguinha definiu a forma musical do choro. O autor de "Carinhoso" foi o principal responsável pela concretização de uma música popular, baseada na formação flauta-violão-cavaquinho. Mais tarde, dando ênfase ao uso da percussão, elaborou uma linguagem de orquestra tipicamente nacional.

Sobre as gravações do álbum, Hermínio Bello de Carvalho, produtor musical, nos conta histórias saborosas na contracapa do LP: "A presença de Pixinguinha, todos sabem, enternece pela sua lindeza. Seus quase setenta anos não alteraram a sua inventiva. Com seus sessenta e cinco anos, mãe Clementina deixava transparecer a emoção de se ver em tão ilustre companhia. João da Bahiana? Quem não o viu passar, com seu terno branco, sua imensa gravata de bolinhas, seu cravo na lapela? Seu único problema, e que o afligia terrivelmente, é se deveria ou não cantar com a dentadura - pois não queria ver prejudicada sua articulação".

SERVIÇO

GENTE NOVA DA ANTIGA

Teatro Rival Petrobras (Rua Álvaro Alvim, 33 - Cinelândia)

1/2, às 19h30

Ingressos entre R$ 42 e R$ 120