Perseguido
Para quem gosta de romance policial com suspense, eu recomendo os escritos de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Ele nasceu no Rio de Janeiro, em 1936, onde viveu e faleceu em 16 de abril de 2020. Formado em Filosofia, Psicologia e especializado em Psicanáise, era professor titular da UFRJ. Escreveu diversos livros sobre Psicanálise e Filosofia. Em 1996, estreou na literatura de ficção com o romance policial, O silêncio da chuva, recebendo os prêmios Nestlé e Jabuti. De sua autoria, foram publicados Achados e perdidos, Vento sudoeste, Uma janela em Copacabana, Berenice procura, Espinosa sem saída e Na multidão.
Suas histórias são ambientadas na cidade do Rio de Janeiro, principalmente entre os bairros de Copacabana e Peixoto. Neste último reside o personagem detetive de seus livros, o delegado Espinosa e, em Copacabana, na Rua Hilário de Gouveia, está localizada a delegacia da Polícia Civil em que ele trabalha. A galeria de personagens recorrentes conta ainda com o jovem investigador Welber, braço-direito de Espinosa e tão incorruptível quanto o delegado.
As narrativas de Garcia-Roza apresentam casos muito mais relacionados a dramas pessoais mal-resolvidos, descartando aqueles relacionados ao narcotráfico e à venda de armas, problemas comuns na cidade do Rio. As descrições de localidades do Rio são muito particulares, pois trazem a visão do heterodoxo policial Espinosa. O único romance do autor em que o delegado não aparece é Berenice Procura, de 2005.
Perseguido, lançado em 2004, apresenta o drama vivenciado por um psiquiatra de hospital universitário, em Botafogo, que se sente perseguido por um jovem paciente. O sentimento de perseguição aumenta a cada dia e passa a ser vivido por outras pessoas ligadas ao médico. Misteriosamente, o paciente desaparece e, depois de alguns meses, é dado como morto. A essa morte seguem-se outras, sem que se possa determinar quem está sendo perseguido e quem é o perseguidor. Tampouco é possível concluir com clareza se as pessoas morreram de morte natural ou se foram assassinadas. Em meio a essa trama, o delegado Espinosa tenta separar o que é real do que é fantasia, tendo como guia apenas a convicção de que a morte não é um delírio.
A urbe é, por excelência, o local do aparecimento do romance. E é nela que o indivíduo, na sua solidão, subsiste com dificuldades para expressar-se, pois se encontra perdido na multidão que habita a cidade. A perda do sentimento de pertencimento contribuiu, sobremaneira, para mudar e pautar o comportamento do indivíduo cada vez mais estranho a si, ao outro e ao território, que já não reconhece mais como seu habitat. À medida que o romance se desenrola, tais sentimentos ficam evidentes. Tanto a cidade, quanto a multidão e a massa são elementos que possibilitam o anonimato e a proteção do criminoso.
Em Perseguido, suspeita-se que Dr. Nesse tenha matado Jonas/Isidoro e sua mulher Teresa. Ele é suspeito também da morte de sua filha caçula. A filha mais velha, em estado de choque, pensando ter descoberto a verdade sobre a morte da mãe e do namorado, atira no peito do pai à queima roupa. Porém nada é tão óbvio na trama.
Protagonizado pelo criminoso, pela vítima e pelo detetive e sustentado pelo enigma que envolve a identidade do criminoso, a narrativa apresenta um crime de autoria desconhecida. Nos romances tradicionais, o criminoso deveria ser entregue a um destinador-julgador para ser punido. No romance Perseguido, a punição do culpado não ocorre, pois é considerado vítima das dores e sofrimentos causados por sua história pessoal, e por não ser possível comprovar sua culpabilidade nos crimes anteriores. Nesse caso, a morte de Jonas/Isidoro e de Tereza.
O suspense acerca da identidade do criminoso mantém o leitor preso à narrativa do início ao fim. Este se torna, também, co-responsável pelo desenrolar da trama. Fato explicado pela dinâmica da trama: são as ações do detetive Espinosa que determinam as ações do criminoso. Enquanto não tiver a sua identidade revelada, o criminoso poderá fazer novas vítimas. Em Perseguido, a morte de Jonas não é imediatamente esclarecida, nem mesmo confirmada. A única certeza é o seu desaparecimento. O criminoso, então, usa o mesmo método para matar Tereza, sua segunda vítima.
A não ocultação do corpo merece destaque. O assassino expõe sua vítima em praça pública. Deixa-a sentada em um banco, numa rua movimentada do bairro de Copacabana, próximo à rua onde morava. Por não se tratar de um criminoso "convencional", é possível acreditar que o sentimento de culpa referente ao primeiro crime importunava o assassino e tornara-se um peso para ele. Consciente ou por descuido, o criminoso deixou o corpo de sua segunda vítima como prova para polícia. Segundo Freud, os sujeitos movidos por compulsões desejam, com a mesma potência, satisfazer tanto sua necessidade de transgressão quanto a de punição.
A trama policial sobrepõe duas séries temporais: a história do crime e a história da investigação. Em Perseguido, as duas narrativas não apenas se sobrepõem, como em algum momento se confundem. A narrativa do segundo crime ocorre durante o processo de investigação do primeiro. O terceiro acontece no auge da investigação do segundo. Entrelaçando, ou costurando as narrativas, há o misterioso desaparecimento da filha mais nova do Dr. Nesse, a Roberta.
A primeira série temporal, a que compõe a história do primeiro assassinato, é construída sobre a história de uma ausência. O narrador dá inicio à segunda narrativa apresentando o detetive, Delegado Espinosa, e seu primeiro encontro com Dr. Nesse. É o momento em que o psiquiatra comunica o desaparecimento de sua filha mais velha. Inicia-se a investigação relatada por um narrador-observador, que revela ao leitor o momento em que o suposto assassino conheceu sua vítima e todos os fatos daí decorrentes. A sensação que a construção da narrativa provoca no leitor é a de que a história começa naquele exato momento. A trama é excelente e o leitor se sente preso em uma teia de narrativas sobrepostas. E para descobrir o autor dos crimes você terá que ler Perseguido. O fato é que Perseguido nos envolve na ânsia de descobrir quem é o perseguido. A obra é tão intrigante e desconcertante quanto as obras de Edgar Alan Poe e Agatha Christie.
Destaco que em 2015, estreou no canal GNT a série Romance Policial - Espinosa, baseada no romance Uma Janela Em Copacabana, de Garcia-Roza. Com direção de José Henrique Fonseca e o ator Domingos Montagner fazia o papel do delegado Espinosa, protagonista da série televisiva, que contou com oito capítulos semanais. Infelizmente interrompida pela morte do ator. Luiz Alfredo Garcia-Roza era, sem dúvida, um mestre do romance policial brasileiro. Boa leitura!
*Doutora em estudos literários e professora