O otimismo das manchetes chinesas frente ao nosso pessimismo
“Governar é retificar”, ensinava Confúcio. Essa máxima sintetiza um dos pilares da tradição chinesa: a busca pela ordem e pela meritocracia como base do progresso coletivo. Mais de dois milênios depois, os ensinamentos do mestre ainda são referência para compreender o modelo construído pelo Partido Comunista Chinês, que adaptou reformas de mercado a uma cultura profundamente enraizada no valor do esforço, da disciplina e da competição. Não é possível compreender a China contemporânea sem compreender Confúcio, pois é desse arcabouço que emergiu a combinação singular entre planejamento estatal e meritocracia aplicada ao desenvolvimento nacional.
Foi com esse pano de fundo cultural que conheci a China nos anos 1980, eu tinha 20 anos e morava em Hong Kong. Naquele tempo, cidades como Xangai, Guangzhou e Pequim ainda davam os primeiros passos de abertura sob Deng Xiaoping. O contraste com Hong Kong era gritante. Na China continental, a infraestrutura era precária, a economia incipiente e o futuro incerto. A sociedade era majoritariamente agrária. A Feira de Cantão loop o, que visitei, era uma pequena mostra de implementos agrícolas e máquinas antiquadas. Hoje, transformou-se numa das grandes feiras comerciais do mundo. Macau, então uma pequena cidade com casario português, está hoje conectada a Hong Kong por uma ponte de 40 quilômetros e movimenta hotéis-resorts integrados com cassinos que faturam como Las Vegas. Enquanto no Brasil temos o escândalo das “bets” , mas não temos nenhuma “Macau”. A legislação de Resorts integrados com Casinos ainda está por ser aprovada.
Nos anos 1980, na China, as pessoas ainda se vestiam com uniformes azuis, cinzas e verdes. Andavam a pé ou de bicicleta. Havia pouquíssimos carros russos nas ruas. O consumo praticamente não existia fora das lojas governamentais, de acesso regulado. Vegetais eram vendidos em esquinas de avenidas. Décadas depois, ao revisitar Xangai, Pequim ou ao conhecer Chengdu, Lijiang e Xinjiang, encontrei um país irreconhecível, que alcançou um progresso sem paralelo na história humana. No turismo, vi parques temáticos e naturais erguidos com rapidez, enquanto no Brasil muitos projetos ficam parados em licenciamentos , travados pela ideologia esquerdista que a China já largou de mão a muito tempo . As cidades chinesas são grandiosas, organizadas em torno de polos de produção, como Shenzhen, capital da tecnologia e inovação. A China teve sua oportunidade , e a agarrou.
A transformação fala por si: mais de 40 mil quilômetros de linhas de trens de alta velocidade construídos em apenas 15 anos, centenas de cidades modernas erguidas, cerca de 800 milhões de pessoas retiradas da pobreza extrema, segundo o Banco Mundial. O país não apenas alcançou, mas superou o modelo de Hong Kong, incorporando a experiência pragmática de Singapura e criando sua própria versão, baseada na competição entre empresas, municípios e províncias, sustentada por uma cultura meritocrática pouco conhecida no Ocidente, mas profundamente enraizada na tradição confuciana. Avança e retifica.
Esse espírito se reflete também na comunicação diária. O China Daily estampa manchetes como “China e Índia são parceiras, não rivais” e “Parcerias para paz, progresso e estabilidade”. A Xinhua celebra a volta às aulas com programas transmitidos a milhões de estudantes e descreve o festival de Qixi como “mais que romance”. Veículos econômicos como The Paper destacam consumo e tecnologia como motores de uma nova fase de crescimento. A mensagem é sempre de confiança e construção.
O contraste é evidente quando olhamos para o Ocidente. O Guardian relata ataques mortais em Kiev, crises humanitárias no Malawi e tensões políticas na Europa. O Washington Post fala em “shutdown iminente do governo americano” e em enchentes devastadoras no Paquistão. Mesmo no Wall Street Journal, notas positivas , como a queda nos juros hipotecários , são exceções em meio a um mar de notícias de crise. No Brasil, nossos jornais e noticiários seguem a mesma lógica e padrão estético . Manchetes tendem a ser mais negativas na grande mídia , e críticas predominam nas redes sociais com foco em escândalos e brigas políticas , falhas institucionais e desafios econômicos. Quanto ao papel fiscalizador é essencial numa democracia, mas a falta de equilíbrio entre crítica e valorização de conquistas cria uma narrativa que aprisiona o país em diagnósticos de fracasso. Notícias boas são vistas como “chapa-branca” . As melhores notícias encontramos na mídia regional e na mídia econômica especializada como a própria revista Exame e jornais como o Valor Econômico . Aliás , ontem assisti um belo programa na CNN sobre a Rota Bioceânica . A CNN que tem o WW , espaço de alto-nível , como a nova CNBC . Valeu a pena assistir o Jornalista Caio Junqueira suando a camiseta na mega agenda positiva da Rota Bi-Oceânica . No geral , avanços reais em inovação, agronegócio, infraestrutura ou desenvolvimento regional , como o sucesso de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, do Centro-Oeste ou do Ceará , raramente ocupam espaço como sinal de progresso coletivo. O padrão estético da ordem e do progresso , do interesse nacional , tem dificuldade de se posicionar.
Já na China o efeito é claro. Num país velho de vida nova , a imprensa chinesa projeta otimismo e confiança, reforçando o compromisso com o crescimento comum. A imprensa ocidental e brasileira, ao enfatizarem apenas riscos e conflitos, reforça a percepção de instabilidade e incerteza. O futuro, na China, é apresentado como campo de oportunidades; no Ocidente e no Brasil, como território de ameaças, em acordo com um certo padrão niilista ocidental .
Por óbvio , não estou dizendo nesse artigo que devamos replicar o modelo chinês, que funciona em outro contexto político e cultural. São histórias diferentes. A lógica do império norte-americana como o do nosso império , é a da liberdade , do individualismo e da desconfiança sobre governos . A do império Chinês é uma história de busca de governo forte num país desgovernado por dois séculos . Mas há lições a extrair. Como lembra o sinólogo francês François Jullien, a China opera sob uma lógica de transformação gradual, em que a narrativa não apenas descreve, mas orienta o futuro. Ao enfatizar o progresso e a continuidade, as manchetes chinesas reforçam uma identidade nacional capaz de superar crises. Já o excesso de negatividade no Brasil e no Ocidente mina a confiança, dificulta consensos e corrói a capacidade de projetar objetivos comuns.
A imprensa é reflexo de seu tempo, mas também cria esse tempo ao narrá-lo. Se só descrevemos o presente a partir de falhas e derrotas, aprisionamos a imaginação coletiva na negatividade. Se equilibramos a crítica necessária com narrativas de avanço, criamos confiança e abrimos espaço para o desenvolvimento. Como ensinou Confúcio, governar é comunicar e retificar, alinhando discurso e prática para construir o futuro. As manchetes chinesas, ao reforçarem uma agenda positiva, mostram a força desse princípio. Cabe ao Brasil aprender com esse contraste e entender que as palavras com que descrevemos o presente são, em grande medida, a matéria-prima do progresso de uma nação. Não devemos abrir mão do otimismo e da construção, nem de nossas tradições democráticas e de nosso espírito crítico desde que orientado para o bem comum. O Brasil e o Ocidente não devem ter vergonha de seus avanços e conquistas. Devemos também celebrar nossas grandes vitórias , que são incontáveis , também em nossas manchetes.
*Cientista Político. Foi Ministro do Turismo e Presidente da Embratur
