O Brasil, ao longo da sua história republicana, tem se notabilizado pelo atraso na legalização e regulamentação de hábitos e costumes. Além, é claro, dos atrasos mais chocantes como a mulher só votar para presidente da república, em 1945, após 56 anos de República.
Voltemos aos hábitos e costumes e ao ano de 1945. Fim da II Guerra Mundial e o Brasil, após Getúlio Vargas claudicar no apoio aos Aliados contra o Eixo Nazifascista entre 1939 e 1942, se soma aos Aliados e engata, ao fim da guerra, na eleição mais ampla e democrática desde a Proclamação da República, em 1889.
Mas o hábito legalizado dos cassinos , frequentado pelas estrelas da república e do entretenimento, como Getúlio Vargas e Roberto Marinho, foi tornado ilegal pelo presidente da república, Marechal Eurico Gaspar Dutra, já em 1946, por influência direta da primeira dama do país, Carmela Leite Dutra, a Dona Santinha, católica fervorosa e muito conservadora. Resultado: 71 cassinos fechados no Brasil e cerca de 60 mil trabalhadoras e trabalhadores desempregados. E, assim, com o apoio de evangélicos e católicos conservadores, a mídia que sustenta essa posição no seu editorial, como o Grupo Globo, os cassinos continuam proibidos no país.
E as loterias federais e estaduais? Essas podem. As apostas de cavalo? Podem. E as bets? E como anunciam na mídia!Também, mais ridícula ainda a situação. Hora de legalizar os jogos e o Estado arrecadar, normatizar e regulamentar a jogatina. Com isso é dinheiro para investir em saúde, educação, segurança, cultura, esporte, etc. Assim funciona no primeiro mundo e, por que não aqui? Enquanto isso, temos no país a segunda maior taxa de juros do planeta, depois da Rússia. Isso sim é jogatina!!!
Aos hábitos. Cigarro, pode. Charuto, pode. Cachimbo, pode. Maconha, não pode! Que ridículo! Mas a vodka pode? O gin, a cerveja, a cachaça, aí pode!!! Fico a pensar no estrangeiro europeu ou uruguaio ou argentino ou norte-americano ao chegar em nosso país e se deparar com essas proibições ridículas. O economista Edmar Bacha cunhou a expressão Belíndia para definir as contradições do país na década de 80. Mistura de Bélgica e Índia. Não deixou de ser atual o conceito. Na distribuição da renda e da riqueza do país e nas contradições entre hábitos e costumes do povo brasileiro e o seu arcabouço legal.
Fernando Haddad, com razão, partiu com seu time da Fazenda para dentro das bets para regulá-las. Como cabe ao Estado. As bets vão pagar taxas e tributos para existir e atrair quem queira apostar. O que, cá entre nós, se depender de mim, as bets e todos os jogos irão à falência. Nunca joguei porque não gosto, mas há milhões de pessoas que curtem jogar, uma minoria se esborracha e perde o que não poderia colocar em aposta, e nessa minoria e naqueles poucos que usam o jogo para lavar dinheiro, os conservadores se agarram para suas campanhas morais contra os maus hábitos e costumes. Pura balela! Perde-se dinheiro e lava-se dinheiro em restaurantes, bois, indústrias, e até, como vimos na cidade de São Paulo, em empresas de ônibus.
Não se pode analisar hábitos e costumes sem incluir a inteligência artificial em nossas vidas. Estou agarrado com Nexus, o novo livro do maior intelectual da nova geração, o israelense Yuval Noah Harari, pela editora Companhia das Letras. Dele devorei Sapiens, Homo Deus e 21 Lições para o Século XXI. Em Nexus, Harari faz uma análise da história das redes de informação da humanidade. Desde a Idade Média à inteligência artificial. Sobre a IA, vaticina sem piedade: nosso caminho é o da entrega de nosso destino humano a uma "coisa" que estamos deslumbrados e que, segundo o autor, está apenas nos primórdios. Assustador, se o Estado não estabelecer leis, decretos e regulações que impeçam desde o uso abusivo de nossos dados até mesmo a situação desenhada pelo autor, da infinidade de atribuições da IA ao seu predomínio intelectual, econômico e emocional sobre nós, humanos. Sugiro também, para maior compreensão dos riscos inerentes à inteligência artificial, a leitura de Colonialismo de Dados, da editora Autonomia Literária, de professores e pesquisadores da Universidade Federal do ABC, localizada em São Bernardo do Campo. Aliás, legado de Haddad e Lula nos oito anos dos dois primeiros governos do presidente.
O Congresso Nacional vive a luta diária, comum nos países democráticos, entre conservadores e progressistas nas lides diárias do parlamento e de suas estruturas de decisão. Comissões permanentes, temporárias, mistas, especiais, reunião de líderes, pautas consensuais e divergentes. A própria Mesa Diretora tem pluralidade. Assim é aqui, assim funciona no mundo democrático. O nosso tem, por via da legitimidade do voto das urnas de 2022, um perfil mais conservador. Já o Presidente da República, pela mesma via legítima do voto, tem um perfil progressista. Esse jogo de sístole e diástole entre executivo e legislativo é absolutamente comum em países democráticos. Aí entra o papel do Supremo Tribunal Federal. Ele é o guardião da Carta de 88, cuja definição, o grande fundador da Nova República, Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, definiu como a "Carta Cidadã". Ora, se a Corte tem esse papel, se as demandas da sociedade sobre temas "da vida como ela é", como definia mestre Nelson Rodrigues, chegam aos borbotões no STF, o que fazer? Não decidir e ser atacado como omisso frente a demandas urgentes e diárias de mais de duzentos milhões de brasileiros? Decide-se! E quem decide? Onze ministros escolhidos pelo executivo federal, com saber jurídico e trajetória reconhecida, e legitimados pelo voto de aprovação do legislativo federal. Pelas decisões tomadas pelo Supremo, há reações favoráveis e contrárias. Quem não já concordou ou discordou? Mas é assim em qualquer país democrático do mundo. Nos Estados Unidos, cuja república inspirou a nossa, há polêmicas quentes entre os três poderes, e suas decisões. Kamala Harris, por exemplo, já declarou que vai lutar pela legalização do aborto em todo o país. E para isso, ela pede aos eleitores, em cada um dos 50 estados norte-americanos, que votem em candidatos democratas ao parlamento, para que se aprove uma lei nacional de legalização do aborto. A legalização nacional do aborto permaneceu no país, da década de 70 do século passado, até recentemente, por decisão da Corte americana. A que legalizou e a que proibiu, foram decisões do judiciário. Na atual regra, os estados podem, por meio de seus legítimos representantes, decidir se mantêm legal ou não. Infelizmente, 20 estados já proibiram. Trump é contra o aborto. Seus candidatos ao parlamento têm a mesma posição. Por isso a ênfase de Kamala Harris em mudar a configuração do legislativo federal para ter uma mentalidade progressista majoritária e aprovar uma lei digna para as mulheres que não as deixem proscritas ao interromper a gravidez, em estados que proíbem o aborto. Kamala enfatiza, também, a necessidade de mudar a configuração da Corte norte-americana. Mas pela via das regras democráticas. A candidata democrata deseja um parlamento progressista para, em caso de aposentadoria do juíz da Corte (lá não há limite etário, a decisão de se aposentar é exclusiva do Juiz)ou sua morte, o parlamento eleja uma substituta(o), com visão aberta e ligada no cotidiano das pessoas e a pluralidade e diversidade da sociedade. E que libertem as mulheres do jugo de leis retrógradas. E aqui no Brasil? Toda decisão polêmica do STF tem reação. Normal. Mas a chantagem de impeachment, estabelecer mandatos para os magistrados da Corte, entre outras ameaças, me parecem de um viés arbitrário e com ares dantescos.
Daí, cara leitora e caro leitor, menos moralismo suicida e mais visão progressista aos hábitos e costumes da maravilhosa diversidade brasileira.
*Jornalista. Instagram: @sergiocabral_filho