Nunca me esqueço de que, em uma das muitas visitas que sempre fazia aos amigos Zélia e Jorge Amado em Salvador, certa vez ele me confidenciou uma delícia de segredinho: “você sabe, Ricardo, que o que me espanta mesmo é receber pedidos de leitores para adentrar e esclarecer certos rolos que eu construo em determinados momentos da ação dos meus romances, novelas ou contos. Tive que casar a D. Flor com o farmacêutico pela insistência de uma leitora, mas em compensação lhe impus todas as tentações do voluptuoso Vadinho. Casou com o homem certo, mas vivia atormentada pelo fogo incessante do falecido marido”.
Mesmo com escritores menores como eu, já aconteceram pedidos inesperados por parte de certos leitores. Agora mesmo, estou instado por leitor de Espanha que pede que eu republique, neste espaço, as crônicas que fiz, envolta em encantos mil, sobre o Taj Mahal, quando visitei a Índia durante um mês de procuras dentro da espiritualidade.
Aí vai, e o faço com alegria, porque o Taj Mahal foi certamente um dos grandes encantos de minha vida.
O deslumbramento do Taj Mahal (Extraído do livro Índia: roteiro bem e mal- humorado. Ed. Gryphus, 1996).
A chegada a Agra foi marcada pela excitação. A tensão natural provocada pela proximidade de um evento raro: conhecer o Taj Mahal. O túmulo, para quem não sabe, é considerado não apenas uma das maravilhas do mundo como também a mais bela construção erigida na idade pós- medieval, por seu irradiante sentido de equilíbrio e de pura beleza.
As poucas horas que me separavam daquele monumento, cujo perfil branco conhecia desde criança, foram de ansiosa expectativa. Chegara a Agra de ônibus, ao entardecer. O guia ajudara a aumentar a excitação quando falou da possibilidade de o monumento estar imerso em névoa seca na manhã do dia seguinte. As fotos e as filmagens ficariam prejudicadas? E se não pudéssemos sequer vê-lo? Mal dormi, mergulhado nas dúvidas do que poderia acontecer na manhã seguinte, quando, finalmente, iria conhecer o ícone que me tinha feito mergulhar em todas as histórias sobre a Índia da minha infância. Em minha imaginação infanto-juvenil elefantes, tigres, Sabus de Hollywood e princesas embrulhadas em saris dourados, com Maria Montez à frente, é claro, todos eles moraram no Taj Mahal.
Acordei bem mais cedo, preocupadíssimo com o tempo, e corri à janela. Uma nevoa seca – não muito espessa – me fez apertar o coração. Afinal, eu só tinha aquela maldita manhã para a visita. E se não desse para ver coisa alguma?
Tomei o café fazendo planos comigo mesmo de abandonar a excursão, caso não atingisse minhas expectativas de visibilidade. Afinal, o Taj Mahal era o que não me podia faltar, nessa viagem de quase um mês pela Índia. Enquanto o ônibus avançava em direção meu Shangri-lá indiano, a névoa se esmaecia. Ao pisar o enorme jardim quadrado que dá acesso ao monumento por uma porta gigantesca – quase um Arco do Triunfo indiano – o perigo passara. O guia informou que câmeras de vídeo só eram permitidas até a entrada. Dentro dos jardins que faceiam o monumento, filmar era terminantemente proibido. A tal ponto que os equipamentos ficariam na entrada, sob custódia do governo.
A expectativa aumentava de minuto em minuto e eu filmava tudo o que podia, até os degraus que davam acesso ao depósito. Guardei desolado a câmera e corri para a porta de acesso ao Taj Mahal. Lá estava o monumento envolvido por um finíssimo véu de neblina que, antes de lhe tirar a visibilidade, realçava-lhe elegantemente as linhas simétricas perfeitas. Fiquei mudo – ou engasgado, sei lá – pela pura emoção da cena. Pareceu-me um sonho De real e concreto, apenas os jardins perfeitamente cuidados que estavam à minha frente, distantes quase um quilômetro da quimera. Sentei-me por rápidos segundos num dos degraus onde começaria a visita e olhei de novo aquele quase bolo de noiva surrealista e inacreditável. Era como se ele tivesse pousado ali suavemente, um disco voador intocado pela brutalidade de mãos humanas.
Fechei os olhos por segundos e voltei aos meus doze anos. Sabu beijava Maria Montez envolta em gazes diáfanas, apenas o umbigo de fora. Elefantes e milhares de mercadores rodeavam o casal. A música subia e guerreiros chegavam em seus cavalos brancos, ladeando o rei mau que vociferava no alto de seu elefante, protegido por enorme toldo cravejado de diamantes. Abri os olhos em curtíssima fração de tempo, atordoado pelos pregões insistentes dos fotógrafos ambulantes que ofereciam seus serviços: duas poses por cinco dólares.
É claro que aceitei, de imediato, a primeira proposta, e lá fui eu fazer uma coisa que jamais poderia ter imaginado: dar as costas ao Taj Mahal para uma foto, apenas segundos depois de me extasiar com sua primeira visão. Pedi ao fotógrafo pressa, como se o sonho não mais estivesse ali quando eu de novo voltasse para ele. E marchei feliz em sua direção.
O monumento, na verdade, é muito mais belo do que todas as fotos e filmes que me puderam mostrar. Aliás, esse espanto com ícones visuais, familiares apenas por fotos e filmes, já ocorrera comigo anos antes, visitando as pirâmides do Cairo e os tempos de Luxor. Por mais que eles possam parecer familiares de longe, quando vistos ao vivo são diferentes. Ou para melhor ou para pior. Assim como as pessoas, em especial estrelas de cinema e cantores famosos.
No Egito e aqui em Agra fui tomado por emoções que julgava pretensiosamente burocráticas. Seria apenas um reconferir. E não foi. Foi muitíssimo mais, como se todas elas nascessem de novo para meus olhos e meu espanto. Os jardins espaçosos que emolduram o monumento foram percorridos por mim, com respiração curta, mas passos firmes. Subi os degraus que conduzem a ele, não sem antes tirar os sapatos e calçar pantufas.
Aliás, o uso obrigatório dos sapatos de algodão é muito inteligente, porque protege e lustra o mármore branco do piso, aumentando a sensação de beleza do todo. As paredes recobertas pelo mesmo mármore abrigam um tesouro incalculável, tanto pelo perfeito desenho de suas formas e de seus arabescos, como pelas pedras semipreciosas, nelas incrustradas. Lápis-Lazúli, ágatas, cristais de rocha, ainda decoram os desenhos, magistrais todos, como o grande mosaico colorido das pedras semipreciosas.
Já as preciosas – como rubis, esmeraldas e diamantes – foram roubadas ao longo dos séculos, nas sucessivas pilhagens de que a Índia foi vítima, a última, possivelmente, durante o Império Inglês. Os recortes no mármore para vazar espaço – uma tradição da arquitetura da Índia, sob domínio muçulmano – atinge seu esplendor neste túmulo, dentro do monumento. É aí que estão, no piso principal, as duas tumbas falsas de seus fundadores. As verdadeiras, os imperadores espertamente deixaram escondidas no piso embaixo, longe dos olhos dos ladrões e dos curiosos. Não pude descer ao andar inferior, em obras para reforma.
Ao lado do monumento, cercado por quatro belos minaretes, estão duas outras construções, rigorosamente simétricas e que foram construídas pelo imperador Shah Jahan para melhor poder contemplar, de ambos os lados, a simetria perfeita do Taj Mahal. E mais confortavelmente chorar a morte de sua esposa Mumtaz Mahal, que morrera de parto ao dar à luz ao seu décimo-quarto filho, com apenas 39 anos.
O imperador mongol, que reinou de 1627 a 1658, havia ficado de tal modo desolado com a morte da mulher, que resolveu fazer de seu túmulo funerário o maior e mais belo monumento de toda a Índia. Convocou arquitetos do mundo inteiro para lhe apresentarem projetos. O vencedor foi um arquiteto turco, daí a s razões tão explícitas dos quatro minaretes.
O templo mortuário demorou 17 anos para ser erigido e custou o trabalho de 20 mil homens, revezando-se dia e noite. Pronto o mausoléu, sua amada Mum taz lá instalada, a Índia quase falida pela extravagância, Shah Jahan exorbitou quando fez anunciar que construiria uma réplica do monumento do outro lado do rio, todo de mármore negro e ainda mais luxuoso.
Quando os filhos do imperador comprovaram que o pai falava sério – e as fundações do novo templo ainda estão lá até hoje – um deles, Aurengzeb- deu um basta àquele delírio e aprisionou o perdulário. De quebra, para evitar protestos familiares, assassinou todos os seus irmãos. Shah passou o resto de seus dias trancado numa construção simétrica que ele erigira, justamente para mirar e adorar a memória de sua amada. Portanto, uma prisão conveniente – quase perfeita – para quem fez a mais linda construção do mundo por amor.
Depois de sua morte, uma tumba igual a de Mum taz foi edificada para que se juntassem para sempre os dois apaixonados.
Ao sair do monumento, depois de admira-lo minuto a minuto, mesmo com o tempo miseravelmente breve imposto pelo guia, percorri o jardim de volta e olhei-o uma vez ainda. Passara-se uma hora desde que ali chegara. O véu fino de bruma, quase imperceptível, já não mais existia, e o Taj Mahal reluzia ao sol a pino no dia azul. Uma nova sensação de beleza me reconfortou. Não me contive e fiz um brinde imaginário ao amor. Só ele mesmo, um amor tão profundo, seria capaz de produzir e legar aquele milagre à humanidade.