Por: Ricardo Cravo Albin*

Os 80 anos de Chico Buarque: Uma saudação

Cantor é um dos grandes nomes da MPB | Foto: Reprodução

“Agora eu era o rei/era o bedel e era também juiz... E pela minha lei / a gente era obrigado a ser feliz...” e conclui “No tempo da maldade /acho que a gente / nem tinha nascido.” (João e Maria – Chico Buarque-1977).

O sagrado deixa transparecer um horizonte novo de valores e significados sem os quais seria impossível viver. O sagrado não agrega o diverso do profano, o diverso da vida. Mas restabelece o sentido exato do profano e da vida. Chico Buarque antecipa na letra da canção João e Maria uma quase paráfrase do sagrado e profano, do supremo do juiz e da lei como antítese da bastardia de ser obrigado a... ser feliz, ou não nascer ... no tempo da maldade.

Essas reflexões extraídas do pensamento de Chico Buarque me chegam agora ao celebrar os 80 anos do talvez mais interessante brasileiro de toda sua geração.

Volto-me aqui para o sagrado, para a luz beatífica do Papa Francisco, que celebrou em 2020 a primeira homenagem papal a um poeta brasileiro, nosso Vinicius de Moraes, bem como ao ritmo do seu povo, o Samba, e de seus fundadores. Citar e louvar Vinicius, de certo, tem tudo a ver com os 80 anos de Chico. Eles foram amigos íntimos, além de parceiros. Gostavam-se intensamente um do outro.

Em meio a um forte discurso de apelo social e político a Encíclica do Papa Francisco aporta robusta citação a Vinicius (1913-1980). No sexto capítulo do texto, dedicado ao diálogo e à amizade social, Francisco menciona uma passagem da letra da música Samba da Benção,“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.

A flecha foi certeira em todos os níveis, a começar pela sacralidade do título do samba, o da Benção. Não que creio na música argentina (berço natal do papa) haja algo próximo a Tango da Benção. Em seguida o Papa que já antecipara seu amor ao Brasil na frase – “O Papa é argentino, mas Deus é brasileiro”, escreve que várias vezes já convidou todos a fazer crescer “uma cultura do encontro que supere a dialética de colocar um contra o outro”. “Seria um estilo de vida que tende a formar aquele poliedro de muitas faces, muitos lados, mas todos a compor uma unidade rica de matizes, porque o todo é superior à parte” doutrinava o Papa com sabedoria.

A necessidade de diálogo é um dos temas de essência desta relevante terceira Encíclica assinada pelo Papa há mais de cinco anos. No documento o Pontífice adentra na definição de conceitos como populismo e neoliberalismo, rejeitando ambos.

As ideias políticas de Francisco não são novas e fazem parte de seus piedosos discursos públicos. “Todos irmãos”(Fratelli Tutti) significa a síntese perfeita de seu ideário social e político. O Papa é direto e corajoso ao atacar o consumismo, a globalização implacável, o liberalismo econômico, a tirania sobre a propriedade privada quando subtraindo direitos aos bens comuns. E até sobre o controle que as empresas digitais exercem sobre a população, incluindo aí as Fake News.

As formas menos compassivas de capitalismo são objeto de ácidas críticas do Pontífice. Há também protestos dele à falta de aprendizado após a pavorosissima crise econômica provocada pela pandemia. Que não serviram para que a “atividade financeira especulatória e a riqueza fictícia fossem regulamentadas”. E o Papa aprofunda – “o Mercado sozinho não resolve tudo, embora mais uma vez eles queiram que acreditemos neste dogma de fé liberal. É só um pensamento pobre e repetitivo diante de qualquer desafio que surja”, reitera o Papa com firmeza pouco vista em qualquer Encíclica anterior. E conclui – “existem regras econômicas que foram eficazes para o crescimento, mas não para o desenvolvimento integral do homem.”

Convidado naquela época a falar para a Rádio Vaticano por conta da citação ao Samba do Brasil e a meu amigo Vinicius, fiz questão de realçar que o poeta carioca foi muito católico na juventude chegando a ser coroinha no Colégio São Bento.

Chamei em especial a atenção da emissora pelo fato de Vinicius ter sido muitas vezes celebrado pelos amigos como um místico, defendido a religiosidade, essência segundo ele, do Bem e de muitas perseguições, especialmente as exercitadas contra escravos nas senzalas do Brasil. E ainda hoje...

De mais a mais, concluí a extensa entrevista que fiz para o Vaticano reiterando que Vinicius pedia a benção, em comovedor preito de humildade aos formadores negros e mulatos da MPB. Chamando-se a si mesmo de “Capitão do Mato, e o Branco mais Preto do Brasil”.

Enquanto o poeta era de família tradicional católica, seu parceiro Baden Powell morreu evangélico praticante.

A Encíclica de Francisco se fez de imediato clássica e premonitória, razão por que me permito evoca-la aqui ao saudar os 80 anos de Chico Buarque Nesses cem anos creio que apenas João XXIII chegou a tal profundidade ao doutrinar sobre política, economia, solidariedade aos pobres.

Portanto, faltará pouco aos extremistas de direita para rotularem o Papa de comunista.
Vinicius louvou a arte do encontro, do respeito ao outro. Usou de sua poesia para empunhar a verdade, mas em forma de oração no Samba da Benção.

“Fazer samba não é contar piada/e quem faz samba assim não e de nada/o bom samba é uma forma de oração...” (Samba da Benção- Baden Powell e Vinicius de Moraes- 1967).

Creio firmemente que Chico Buarque ao adentrar os 80 anos repetiria com gosto e prazer o vaticínio de seu amigo Vinicius de Moraes : - “Um bom samba e uma forma de oração”.

Daqui saúdo Chico Buarque, a quem tenho o prazer (e o privilegio) de conhecer bem ao comecinho da fulminante carreira, La pelos meados de 1965/66.

Já escrevi varias vezes a partir do momento que conheci Francisco Buarque de Holanda – “Este Chico Buarque concentra uma soma de virtudes que põem de pé um quase milagre” – O “Brasileiro-rei” o “Homem-orgulho de seu país”.