Por: Ricardo Cravo Albin

Repensando o Réveillon do Rio

Réveillon | Foto: Alexandre Macieira/Riotur

Não se pode atribuir a Machado de Assis a condição de cronista essencialmente carioca. Não com a volúpia, por exemplo, de João do Rio ou mesmo, bastante depois, de Rubem Braga.

Mas ao fundador da Academia Brasileira de Letras não passaria despercebida a observação sutil da degradação dos costumes citadinos ante o novidadeirismo de governantes mais megalomaníacos que exatos. Machado já se referiu, em crônica publicada na virada do século, à falta de respeito das autoridades ao casario imperial e, também, aos pregões populares com que as ruas cariocas se enchiam de vida e de sabor.

Não tenho nenhuma dúvida de que, vivos estivessem, Machado e também João do Rio ou ainda Rubem Braga botariam suas respectivas e doutas bocas nos trombones para lamentar a transformação quase radical de mais uma querida tradição carioca e que foi a festa de Iemanjá em Copacabana, na noite do Réveillon.

Mas, vamos por etapas. Pra início de conversa, o Réveillon de Copacabana começou a ficar célebre nas décadas de 40 e 50 exatamente pelas oferendas a Iemanjá, objeto de crescente adesão da classe média alta que sempre fez suas festanças nos belos apartamentos da Avenida Atlântica. Os fogos de artifício começaram a se somar ao binômio lemanjá moradores, a meu ver, sem prejuízo para ninguém, muito pelo contrário. Afinal, lucravam todos e também a indústria hoteleira, que ampliava a festa, ainda num nível tolerável, para encher seus hotéis, restaurantes e similares. E o que ocorreu, especialmente nesses quase 20 anos? Administradores de turismo novidadeiros e despreparados resolveram descobrir a pólvora, isto é, ampliar a festa, transformando-a num mega mafuá. O resultado logo ficaria visível para qualquer observador mais atento. Quem lucraria? Ora, os referidos gênios marqueteiros do turismo, que assim podiam melhor bajular seus chefetes, os prefeitos, logo incitados a declarações bombásticas e demagógicas do tipo "Copa terá o maior Réveillon do mundo", e "terá o maior show do mundo", "terá isso e aquilo maior do mundo", entre outras sandices para impressionar futuros eleitores semianalfabetos, incapazes de refletir sobre a esperteza desses triunfalistas.

E quem perderia, sem que os geniozinhos novidadeiros a isso dessem à mínima? Primeiramente, os contribuintes que pagam IPTU caríssimo na Atlântica e no próprio bairro, incomodados com a sujeira, a poluição sonora desenfreada (que volta a todo o vapor) e o literal aprisionamento dentro dos limites de Copacabana. Segundo, o mais grave a meu ver, o destroçamento do elemento que motivou a notoriedade da festa, a enternecedora e bela Noite de lemanjá, com seus cânticos, suas velas e as preciosas tradições do sincretismo afro-brasileiro.

Ao que li pelos jornais os festejos de lemanjá, expulsa da orla de Copa, estão sendo transferidos paulatinamente para o dia 30 ou mesmo para a Barra e outras praias cariocas. Até mesmo para a pequena praia da Urca. Desse modo, centros de candomblé e umbanda evitaram, mais uma vez, os empecilhos e embaraços com que a orla de Copacabana é aviltada a partir das primeiras horas do dia 31.

Dito e feito. Nas duas festas de que participei, em apartamentos de Copa com amigos, pude testemunhar a desolação de pessoas as mais diversas pela ausência de Iemanjá, desde jornalistas e intelectuais europeus a senhoras da sociedade carioca, todos insatisfeitos com a falta das velas, dos cânticos e dos atabaques nas areias de Copacabana.

Areias, por sinal, que continuam abrigando os horrendos mafuás que insistem a cada verão em infelicitar e abastardar o ainda (?) cartão-postal do Rio. Aliás, o pique dos mafuás se verifica mesmo no Réveillon. Quando a todos os existentes ainda se somam os três palcos com suas respectivas parafernálias, para os shows. E ninguém toma mesmo uma providência corajosa para impedir esses horrores. Ao contrario. Enchem a Boca e vociferam – “Será o maximo!”.

Certamente que esses meus clamores serão puras palavras ao vento. Está mais do que na hora de a Prefeitura do Rio entender - de uma vez por todas - que as areias de Copacabana não devem admitir esses horrendos mafuás oficiais. Já bastam as quitandas particulares dos ambulantes e barraqueiros que emporcalham e enfeiam as limpas e amoráveis praias do Leme, de Copa e da Urca.

Em resumo, quero dizer com todas as letras uma possível blasfêmia – insisto blasfêmia – para muitas consciências triunfalistas e ocas: o bom não será planejar aumento do Réveillon de Copa, será, ao contrário, diminuí-lo e fazê-lo retroceder aos parâmetros ideais de quinhentas mil pessoas. Com lemanjá, com velas e cânticos. Com seu respeito aos contribuintes do mais caro IPTU da cidade. Sem shows de qualquer espécie (que deverão existir, mas em outros lugares). Mas com fogos, de preferência tão lindos quanto os deste ano.

Nem tudo estará perdido para Copacabana, se ela voltar a ser o que já foi. Iemanjá, quem sabe? poderá retornar triunfante a Copa depois de seu autoexílio, caso os Réveillons alternativos se multipliquem como este ano a Secretaria de Turismo já sinalizou. Ou seja, o crescimento das festas em Ipanema, Leblon e Barra. Além do local naturalmente adequado ao maior Réveillon carioca, o mais acertado para o ano 2025, que são as praias da Baía de Guanabara em especial Flamengo, Glória, Botafogo e sua margem oposta de Icaraí, Niterói. Quem viu a queima de fogos na Baía de Sydney (Austrália) já poderá ter uma ideia de como será aqui, na baía mais bela e menos aproveitada do mundo até porque, até hoje, nenhum governo conseguiu limpá-la convenientemente... Ali, sim, poderiam ser realizados os shows e os espetáculos que a burrice caturra, e não há outro nome para melhor defini-la, insiste em realizar nos mafuás plantados nas pobres e sacrificadas areias de Copa.