A chinelada nos que temem os pés na estrada

Talvez esses bolsonaristas tenham entendido o comercial muito além dessa história de pé direito. Não se pode descartar que tenham ficado incomodados com a pregação de uma vida mais livre, menos amarrada, mais descompromissada, mais alegre, prazerosa e feliz.

Por Fernando Molica

Fernanda Torres e as Havaianas viraram alvo da direita

A julgar pela reação de parte da direita ao comercial das Havaianas, será preciso fazer cirurgias para, no casos de bolsonarismo extremo, transplantar corações do lado esquerdo para o direito; canhotos como Gérson, Rivellino, Martha, Roberto Carlos, Adriano, Ayrton Senna e Gabriel Medina irão para o lixo da história. Antigos discos de Canhoto da Paraíba serão quebrados em praça pública. 

Talvez tenha faltado aos publicitários que criaram e aprovaram a peça um certo cuidado; alguém para dizer que brincar com palavra "direito" poderia dar problema num país que enloqueceu. Campanhas publicitárias de grandes empresas costumam ser submetidas a diferentes grupos sociais para checar suas reações.

Mas, caramba, é muita maluquice achar que ao brincarem com a ideia da sorte, ao questionarem a ideia de se começar o ano com o pé direito, os autores do comercial tenham buscado fazer alguma referência à direita política.

Até porque o objetivo de peça é gerar vendas, pouco importa a ideologia dos bípedes que usarão tais chinelos (o líder chinês Deng Xiaoping chocou boa parte dos camaradas comunistas quando justificou reformas de viés capitalista que introduzia em seu pais: "Não importa a cor do gato, desde que ele cace rato", ensinou).

O comercial que despertou tanto ódio tem a sacada de reforçar a associação das Havaianas, com a liberdade, com o prazer, com o descompromisso, ainda mais no verão. Como diz o texto, sorte não é algo que dependa de nossos desejos ou expectativas. Então, melhor do que dar um passo com o pé direito (ou, como poderia ter dito, pular sete ondinhas, comer lentilhas) é tomar as rédeas da própria vida.

Daí a sugestão dada pela Fernanda Torres — que é destra! Melhor começar o ano com os pés na porta, na estrada, na jaca. O texto poderia até fazer parte de um desses livros de autoajuda ao encorajar as pessoas a tomarem as rédeas da própria vida, a serem sujeitos da própria história, a não temerem o futuro. As frases caberiam num desses cursos picaretas do Pablo Marçal.

Mas talvez esses bolsonaristas tenham entendido o comercial muito além dessa história de pé direito. Não se pode descartar que tenham ficado incomodados com a pregação de uma vida menos amarrada, mais livre, descompromissada, alegre, prazerosa e feliz. Sentiram-se como se tivessem tomado uma chinelada.

Repare que os próceres da extrema direita brasileira raramente aparecem sorrindo nas fotos, a começar por Jair Bolsonaro (mesmo quando estava em campanha ou na Presidência). Risos, quando os há, são quase sempre de ironia ou de deboche, não de gozo ou de desfrute.

O discurso dos integrantes dessa corrente política se baseia no ódio, na destruição, no acirramento — mais do que falar de si, falam do outro, numa lógica que remete aos conceitos bíblicos de bem e de mal.

Atuam na vida política como pastores e padres que falam mais do terror dos infernos do que da alegria do Paraíso. Assim, o discurso da libertação, dos pés na porta, na estrada e na jaca é capaz de incomodar quem prefere a tranca e os limites das paredes de casa.

Por último: se vivo fosse, Tim Maia poderia acrescentar mais um parodoxo à sua lista em que relaciona, aos absurdos brasleiros, o fato de traficante se viciar, prostituta ter orgasmo e cafetão sentir ciúmes. A julgar pelos bolsonaristas, banqueiro — como os Moreira Salles, donos também da Alpagartas, que fabricam as Havaianas — são comunistas.