Justiça prende e Congresso solta

Suas excelências revelaram a existência de dois tipos de criminosos: os desconhecidos e os amigos.

Por Fernando Molica

Esperidião Amin (PP-SC) relatou o projeto no Senado

A mobilização de deputados e senadores para diminuir as penas dos que tentaram implantar uma nova ditadura no país sugere uma mudança naquela história de dizer que polícia prende e Justiça solta: desta vez, a Justiça prendeu, o Congresso é que quer apressar a volta de todos para casa.

O casuísmo — a vontade de libertar Jair Bolsonaro e outros condenados — é tão grande que a maioria da Câmara e do Senado fingiu não ver o óbvio: a legislação que serviu de base para mandar tanta gente para a cadeia é recente, foi aprovada em 2021 pelo Congresso e sancionada pelo presidente hoje recolhido à Polícia Federal. 

Boa parte dos parlamentares que também decidiu diminuir o tempo para a progressão do regime prisional dos golpistas (podem ser assim chamados por terem sido condenados em última instância) integra o grupo dos que reclamam de regalias de presos, que tanto pedem leis mais duras contra o crime, que travaram batalhas contra a chamada saidinha. Eles são duros com o crime dos outros.

Na prática, suas excelências revelaram a existência de dois tipos de criminosos: os desconhecidos e os amigos. Os primeiros devem ser punidos com todo rigor; merecem penas intermináveis, isolamento, comida de péssima qualidade, distância de qualquer benefício baseado em direitos humanos. Esses parlamentares não exibem sinais de leniência nem com jovens menores de 18 anos.

Já os amigos sequer deveriam ter sido investigados, processados, denunciados, condenados e presos. São tidos como vítimas inocentes, pessoas que sequer cometeram qualquer crime. Seus atos são encarados como menores, como se tramar um golpe de Estado fosse menos grave do que furtar um celular.

Não custa lembrar que, além de desrespeitarem o sagrado princípio do voto popular, ditaduras não oferecem flores aos seus adversários; necessariamente promovem assassinatos, sequestros, torturas e roubos (afinal, não há Justiça independente num regime autoritário).

Quem minimiza a tentativa de abolição do Estado de Direito e a tentativa de Golpe de Estado — dois crimes incluídos no Código Penal — absolve antecipadamente os crimes que seriam cometidos numa ditadura. Estabelece uma parceria com os porões, concede um habeas corpus preventivo para futuros assassinos e torturadores.

Não vale também usar a anistia de 1979 como justificativa. A lei aprovada e sancionada há 46 anos marcava o início do fim de uma ditadura; os anistiados, diferentemente dos atuais condenados e presos, não haviam tentado derrubar a democracia, lutaram contra o golpe que havia sido implantado em 1964.  Anistiar quem lutou contra uma ditadura é diferente de anistiar quem tentou recriar o arbítrio.

Leis têm que ser impessoais, não devem ser mudadas ou adaptadas de acordo com os acusados de infringi-las. Claro que podem ser alteradas a partir da constatação de erros ou exageros em sua formulação ou aplicação, mas isso teria que ser feito com cuidado e respeito ao que foi decidido anteriormente.

Esse tipo de precaução é necessário até para não descaracterizar a gravidade de crimes que a legislação busca punir. Pela primeira vez em sua história marcada por golpes de Estado, o Brasil decidiu responsabilizar os que tentaram abolir a democracia, e essa conquista não pode ser abalada.

A punição aos culpados foi a maneira correta e legal de pacificar o país e de garantir tempos mais tranquilos.