O menino podia ser seu filho

Imagine - é doloroso, mas necessário imaginar - receber, em casa ou no trabalho, a notícia de que seu filho foi baleado, ainda mais dentro da escola. É preciso pensar no desespero, na incredulidade, na dificuldade de obter detalhes sobre o ocorrido, sobre o estado de saúde da criança.

Por Fernando Molica

Complexo da Maré, Zona Norte do Rio

A bala que atingiu Pedro Henrique, de 12 anos, dentro de uma escola do Complexo da Maré, durante uma operação policial, faz lembrar a frase dita por estudantes em 1968, horas depois de o secundarista Édson Luís ter sido morto pela PM. Ao interromperem peças de teatro para denunciar o crime, eles repetiam: "Mataram um estudante, podia ser seu filho."

Imagine receber, em casa ou no trabalho, a notícia de que um filho foi baleado, ainda mais dentro da escola. Como encarar o fato, o desespero, a incredulidade, a dificuldade de obter detalhes sobre o estado de saúde da criança?

Nem é assim tão difícil conceber como seria a correria para chegar ao local — ouvir que é perigoso ir até lá, que o tiroteiro ainda está acontecendo, como se houvesse perigo maior do que ter um filho baleado.

Qualquer um de nós sairia correndo ou trataria de pegar um táxi, o celular escorregaria das mãos, seria impossível localizar o número de algum amigo ou parente em meio aos gritos, as rezas e orações, à repetição das palavras meu Deus, meu Deus, meu Deus.

Ainda haveria a chegada ao hospital, a tentativa de invadir a sala de cirurgias, a UTI. Como conter a vontade de empurrar todo mundo que tenta impedir o básico, o encontro com o que há de mais importante nas nossas vidas? 

Experiência parecida foi vivida ontem por uma mãe e um pai que moram na Maré. A essa hora, eles devem estar ao lado do filho numa enfermaria, aliviados pela recuperação do menino, angustiados com a volta para a casa, para o local onde vivem. Como deixar o garoto voltar à escola? Não vou deixar, deve ter dito a mãe, que faz e refaz contas, calcula quanto seria necessário para que eles deixem a casa onde vivem. Ir pra onde?, questiona o marido.

É preciso imaginar a tragédia para ao menos interromper a indiferença e, mesmo, o entusiasmo que sustentam ações que enxugam gelo e espalham sangue pelas favelas. Operações que ocorrem apenas pelo fato de boa parte da população não ter a menor empatia por quem vive por lá, pobres e geralmente pretos; cidadãos vistos como "eles" e não como "nós". São como os feios, sujos e malvados do filme de Ettore Scola. Seres humanos que não mereceriam atenção, carinhos e  cuidados do Estado.

É inegável que as quadrilhas que dominam favelas e bairros pobres são cruéis, exercem um poder ditatorial, ameaçam e punem moradores. Mas só fazem isso graças à incompetência, tolerância e parceria do Estado, cresceram à sombra do poder público ou se alimentam da luz por ele fornecida.

O combate a esses grupos não pode, porém, repetir a mesma crueldade por eles exercida e nem insistir em estratégias que dão errado há décadas.

Levantamento feito pela organização Redes da Maré mostrou que, nos sete primeiros meses do ano letivo de 2024, 20 mil estudantes de 49 escolas da comunidade ficaram 26 dias sem aulas devido a operações policiais.

Como dar a essas crianças e jovens ao menos a ilusão de um futuro melhor, como incentivá-los a estudar, a tentar romper a estrutura criada para manter a pobreza do jeito que está? 

Pelos registros feitos no Ministério Público, a operação de ontem foi a 18ª realizada este ano em favelas da Maré. Não é difícil prever que será tão fracassada como as demais, como as 5.500 que, desde junho de 2020, ocorreram em favelas cariocas.

Em nenhuma delas o Estado acabou com o crime organizado no local, retomou territórios, restabeleceu a lei.

Entre os 122 mortos na megaoperação nos complexos da Penha e do Alemão há cinco policiais. Morreram em vão, assim como o sargento PM Jorge Henrique Galdino Cruz, que tombou em junho de 2024 na Maré. É preciso quebrar essa lógica, garantir segurança e preservar vidas, entre elas, as vidas dos filhos de todos nós.