Voluntarismo, erro, tiros e vítimas
Vale repetir: qualquer pessoa, policial ou não, só pode atirar para defender a própria vida ou a de terceiros.
Internado em estado grave, o policial militar Cláudio Marques dos Santos Barcellos é vítima de um gesto que, embora bem intencionado, indica impulsividade, despreparo e desrespeito à lei.
De acordo com testemunhas, ele, na tarde de terça, de folga, reagiu a uma tentativa de assalto a um pedestre em Botafogo, Zona Sul do Rio, o que provocou um tiroteio. O assaltado, Leandro Rodrigues, também foi feriado e está hospitalizado; um dos assaltantes morreu.
Vale repetir: qualquer pessoa, policial ou não, só pode atirar para defender a própria vida ou a de terceiros. Cabe à investigação apurar se os assaltantes estavam prestes a atirar em Rodrigues, o que justificaria a reação de Barcellos. Mas, também segundo pessoas que viram o episódio, o PM passava pelo local em sua moto, viu a ação dos criminosos e reagiu.
Por mais heroico pareça, o gesto do PM aponta para a repetição de um comportamento que ficou banalizado entre nós e que gera consequências trágicas. O assalto à mão armada é um crime grave, não se pode admitir que uma pessoa corra o risco de ser morta caso não entregue dinheiro e bens.
É compreensível a revolta dos cidadãos, assim como é lícito entender que, ao testemunhar um crime, um policial tente impedi-lo, cumpra sua função. Barcellos poderia ter, simplesmente, seguido seu caminho, mas preferiu agir, sabendo que colocava a própria vida em risco. Todos temos que torcer por sua recuperação.
Mas, como representante do Estado, cabe a um policial avaliar em que situações ele deve atuar, julgar até que ponto sua ação pode provocar algo ainda pior que a subtração de bens de terceiros. Ninguém gostaria de ser ameaçado por alguém armado, mas pior do que isso é ficar no meio de um tiroteio. Duvido que Rodrigues, a vítima do assalto, ache que foi melhor tomar um tiro do que perder a carteira e o celular.
Essa consciência do policial vai além de uma posição particular, precisa ser ressaltada pelos superiores. A função prioritária da polícia não é prender ou matar bandidos, mas proteger a vida e garantir segurança.
É muito delicado criticar um policial que está em estado grave por ter tentado socorrer um cidadão — sua intenção, importante insistir, foi nobre. O problema é que, salvo uma apuração mais detalhada, as consequências de sua atitude foram ainda mais graves do que o assalto em si; ele mesmo corre risco de vida.
Não custa frisar um ponto que costuma passar batido nas discussões sobre o enfrentamento ao crime, a necessidade de se garantir também a integridade dos policiais, funcionários públicos que têm o direito de exercerem uma profissão tão essencial.
Esses homens e mulheres não podem ser tratados como descartáveis. Também são vítimas da insanidade que estimula confrontos que servem apenas para aplacar o desejo de vingança de uma população que, amendrontada, aceita qualquer tipo de ação contra a criminalidade, mesmo aquelas que produzem apenas cadáveres e feridos.
Ao estimularem o pegar pra capar, o vale tudo, o bandido bom é bandido morto, autoridades de diversos níveis atiçam a irracionalidade e um suposto espírito de heroismo que continua a produzir mortos por todos os lados e que não melhorou em nada a segurança pública.
Não se pode continuar a apostar numa receita que, há décadas, vem se mostrando errada. Policiais não devem ser estimulados a agirem como salvadores, mas como profissionais capazes de cumprir seus deveres, de atingerem metas.
Insistir na insanidade coloca em risco mais e mais vidas, todos os dias, especialmente entre a população mais pobre, aí incluídos policiais militares (os que morrem são quase todos de baixa patente). Em outubro, Barcellos recebeu R$ 3.170,17 de salário líquido e mais R$ 2.089,54 por trabalhos extras, autorizados pela PM.