A perna sem cabelos do 'seu Jair'

O tom de voz é compreensivo, como de quem ralha carinhosamente com uma criança que quebrou um brinquedo ou com um velhinho que se perdeu ao caminhar a esmo pelas ruas.

Por Fernando Molica

Policial manipula a tornozeleira danificada por Bolsonaro

O diálogo entre a policial Rita de Cássia Gaio Siqueira e Jair Bolsonaro sobre os danos por este causados à tornozeleira eletrônica se inclui entre os mais inacreditáveis da história política brasileira, de tão absurdo e alegórico sobre os descaminhos do poder.

O fato de não haver imagens dos rostos dos protagonistas aumenta a dramaticidade e o ridículo da cena. A câmera está fechada no aparelho danificado e mostra um pedaço da canela do ex-presidente. A ausência das faces de Rita e de Jair permite que imaginemos as caras de ambos durante daquele interrogatório.

Diretora-adjunta da Secretaria de Administração Penitenciária do Distrito Federal, condecorada pela Câmara Legislativa do DF por sua atuação na intentona do 8 de Janeiro, Rita de Cássia parece se dirigir a uma criança ou a um idoso já indefeso e com dificuldades de compreensão.

Com um sotaque que remete ao interior de São Paulo, ela usa um tom quase tatibitati para se dirigir àquele que, não faz tanto tempo assim, era a pessoa mais poderosa do país e que até hoje mobiliza milhões de apaixonados.

Enquanto fala, roda a tornozeleira de um lado para o outro, movimentos que geram e ressaltam marcas de flacidez na pele do homem idoso, de 70 anos, o "seu Jair". O tom de voz é compreensivo, como quem ralha carinhosamente com uma criança que quebrou um brinquedo ou com um velhinho que se perdeu ao caminhar a esmo pelas ruas. 

É como se ela percebesse uma fragilidade no mesmo homem que, outro dia, louvava torturadores, queria fuzilar a petralhada, classificava de maricas os que alertavam para os riscos da covid, usava o pronome possessivo "meu" para falar do Exército, simulava o desespero dos que morriam sufocados. A perna mostrada no vídeo nada tem de cabeluda, parece ter ficado incapaz de distribuir chutes, deixou de ser como a do filme "O agente secreto".

O mais impressionante é que ele aceitou ser tratado dessa forma pela policial, não demonstrou nada da agressividade e da arrogância que marcaram suas falas públicas.

Falou baixo, parecia constrangido, envergonhado de admitir — ainda mais para uma mulher — que fizera tamanha besteira. Agiu como quem pedia desculpas à mãe ou à netinha, e atribuiu seu gesto de danificar a tornozeleira a uma "curiosidade". O Cavalão — seu apelido na academia militar — fraquejou, estava mais para matungo ou pangaré.

Ao depor na audiência de custódia, Bolsonaro mudou sua justificativa para o gesto. Culpou uma combinação de remédios pelo que classificou de "alucinação": achar que havia escuta na tornozeleira. Mais uma vez, tratou de terceirizar responsabilidades pelo que fez.