Verissimo e o prazer de ler e escrever

Verissimo - e aqui foco no cronista, no contista e no roteirista - fazia com que ríssemos de nós mesmos, expunha nossos egos e vaidades a uma espécie de versão soft do joelhaço do seu analista nascido em Bagé.

Por Fernando Molica

Luis Fernando Verissimo morreu no sábado, em Porto Alegre

Luis Fernando Verissimo, que morreu no sábado, ensinou muita gente a ler com prazer. Duvido que alguém que escreva profissionalmente — ou tenha buscado fazer isso — não invejasse seu jeito de lidar com as palavras.

Duvido também que essa mesma pessoa, assim como quem não quer nada, quando ninguém estivesse olhando, jamais tenha tentado imitar as frases de LVF, sua pontuação, seu jeito de fingir que ia — e acabava indo, ou voltando pra ir depois.

Escrevia como Didi jogava. Postura sempre ereta e elegante, cabeça lá no alto; pés que determinavam mudanças bruscas no ritmo e no compasso, que faziam com que a bola mudasse de direção. Uma literatura que, como o bom futebol, terminava com bola na rede.

Quando comecei a ler suas crônicas, fiquei impressionado pelo jeito com que ele conseguia ser simples e sofisticado, dono de uma insuperável capacidade de ironizar, com muita argúcia, perspicácia e carinho, a vida privada de cada um de nós, a dele incluída. Seus textos eram enxutos, sem qualquer gordura: "Tinha os seios como eu gosto, um de cada lado" (Mort, Ed Mort).

Com aquele jeito bonachão, foi um dos mais sarcásticos críticos da ditadura militar e de seus cúmplices. Aplicava suas rasteiras de maneira quase delicada, muitos dos gorilas de plantão só devem ter notado o tamanho do tombo depois de nocauteados, no chão.

Incluiu nas tirinhas das Cobras uma espécie de rinoceronte de carcaça blindada que, com seus óculos escuros, emulava ditadores e acabava com a alegria daqueles répteis de traços simples e expressivos.

No ocaso do regime, inventou a Velhinha de Taubaté, a última brasileira que ainda acreditava no governo: seu gato de estimação tinha o nome do porta-voz do general João Figueiredo, Carlos Átila. Anos depois, decepcionado com medidas de viés liberal tomadas por Fernando Henrique Cardoso, escreveu que ele, que tanto flertara com a esquerda, fora sequestrado e em seu lugar fora colocado um tal de Éfe Agá. O presidente sentiu o golpe, disse que, dos Verissimos, só lia o Erico. 

A educada e afiada troca de farpas entre LVF e FHC chega a dar saudades, remete a tempos mais saudáveis, em que a inteligência — e não a grosseria, a agressão e a mentira deslavada — tinha espaço no debate político-institucional. 

Simpático à esquerda e ao PT, Verissimo construiu uma espécie de unanimidade. Os que não gostavam de suas posições políticas acabavam se rendendo ao seu olhar original e ferino sobre a tal da família brasileira, então mais tolerante e aberta ao novo, a um humor que jamais foi parceiro do preconceito, que nunca zombou dos que apanhavam. 

Verissimo — e aqui foco no cronista, no contista e no roteirista — fazia com que ríssemos de nós mesmos, expunha nossos egos e vaidades a uma espécie de versão soft do joelhaço do seu analista nascido em Bagé. Trazia no próprio nome imperfeições gramaticais — a falta de acento no prenome e no sobrenome — que lhe apontavam um caminho, um jeito de lidar com a vida e com a literatura. Fazer o quê?

Torcedor do Internacional (dizia que se o Grêmio jogasse contra um time de cachorros seria capaz de colocar em si uma coleira para latir na arquibancada), cultivava, no Rio, uma doce simpatia pelo Botafogo.

Durante muitos anos, durante a Grande Seca de títulos do Alvinegro, entre 1968 e 1989, conservei numa placa de cortiça exposta no quarto uma tira em que duas cobras, à noite, olhavam para o céu e conversavam sobre o futuro, sobre o ano novo.

Uma perguntou algo sobre grandes conquistas; a amiga respondeu que pensava em outro assunto. Mirava, lá no alto, uma única e solitária estrela, emoldurada pelas linhas curvas do escudo do Botafogo. A conquista chegaria, estava escrita por Verissimo naquela estrela.