Por: Fernando Molica

Tendler e a história devolvida

Silvio Tendler, diretor de "Os anos JK" e "Jango" | Foto: Divulgação

Ao dirigir "Os anos JK", o cineasta Silvio Tendler (1950-2025) devolveu ao país parte significativa de sua história. Lançado ainda durante a ditadura, o documentário jogou nas telas fatos e personagens que o regime militar tentava esconder, entregou um passado recente do Brasil para uma geração que crescera sob a censura.

Brasileiros criados depois da redemocratização talvez tenham dificuldades para compreender o impacto causado pelo filme de um até então desconhecido cineasta. Fruto de um minucioso trabalho de pesquisa de imagens e de texto, "Os anos JK" arrastou cerca de 800 mil pessoas aos cinemas, marca até então inédita para um documetário.

O filme representou uma espécie de ponte que nos ligava ao que ocorrera havia poucas décadas antes. Recuperava personagens cujos nomes, havia 16 anos, tinham que ser sussurrados, citados em voz baixa.

Apenas um ano depois da anistia que libertava perseguidos ao mesmo tempo em que promovia o futuro de torturadores, Tendler falava não apenas de Juscelino Kubitschek mas também em João Goulart, enfatizava a infâmia do AI-5. O hiato histórico era tamanho que o filme começa com a promulgação da Constituição de 1946, trata do Golpe de 1964, do fechamento ainda maior do regime em 1968 para então chegar à morte de JK. 

Havia muito que precisava ser contado, "Os anos JK" tinha necessidade de falar, de relatar — como alguém que chega de uma longa viagem. Era também preciso lembrar que o país já fora mais feliz e ensolarado, cultivava esperança, não temia o futuro, confiava na capacidade civil de construir o próprio destino.

Além de nos proporcionar um encontro ou reencontro com a nossa história, Tendler nos reconciliou com a perspectiva de felicidade, com o país que ouvia bossa nova, ganhava Copa do Mundo, cultivava uma arte moderna, fabricava carros, construía uma nova capital.

JK, o presidente, era um legítimo representante de uma elite conservadora, seu governo não ousou mexer nas mais que injusta desigualdade nacional — mas ele representava uma expectativa de um país melhor.

JK, o filme, ressaltou que a felicidade e a liberdade eram possíveis, boas e desejáveis. Na plateia, aprendíamos a separar melhor as trevas da luz, cultivávamos a gênese de um país melhor.

Quatro anos depois, Tendler lançaria "Jango", uma espécie de continuação do primeiro filme — abordar a tragédia do personagem, frisava a importância de devolução do país aos seus donos.

Insistente, o cineasta esbajava bom humor, mesmo diante de limitações impostas pela doença que o obrigou a usar cadeira de rodas.

Nada que impedisse o trabalho de um cara que, ao reabrir antigos caminhos, nos estimulou a buscar novas saídas. Num momento em que o país se recupera de uma nova tentativa golpista, os filmes de Tendler renovam a esperança e o compromisso com a democracia.