Por: Fernando Molica

Bolsonaro ressuscitou a cultura do golpe

A ameaça ocorrida no mandato de Bolsonaro recuperou o sentido de antigas canções de protesto, como as de Chico Buarque | Foto: Reprodução

A condenação de Jair Bolsonaro, de oficiais-generais e de outros acusados abre caminho para o rompimento de uma cultura golpista ainda muito presente entre nós. O flerte explícito do ex-presidente e de chefes militares com a quebra das regras democráticas havia jogado boa parte do país de volta a um passado nada idílico.

Músicas como "Apesar de você" (Chico Buarque) e "Cálice" (Chico e Gilberto Gil) haviam voltado a fazer sentido, deixaram de ser apenas belas canções representativas de um momento histórico para reconquistarem atualidade. 

No processo eleitoral de 2022, versos como "A minha gente hoje anda/ Falando de lado/ E olhando pro chão" recuperaram  a capacidade de exprimir sentimentos, revoltas e esperanças vingativas ("Você vai pagar/ e é dobrado"). O mesmo em relação à dor traduzida em "Como beber dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta".

O radicalismo e a guerra cultural promovidos pela extrema-direita fizeram renascer uma polarização típica dos tempos da ditadura, entre situação e oposição, um revival dos tempos de Arena contra MDB. Nas eleições, a prioridade de setores não bolsonaristas passou a ser a escolha de candidatos não alinhados com o então presidente, um movimento que contribuiu para a diminuição do leque de alternativas.

Nas disputas presidenciais de 2018 e 2022, a lógica do segundo turno contaminou a primeira rodada dos pleitos, tudo voltara a ser na base do nós contra eles, uma dicotomia que enfraquece a diversidade da representação e a busca de novas perspectivas políticas.

Notas produzidas por comandantes militares haviam recuperado sua importância, voltaram a ser lidas com lupa, da mesma forma que ocorria na época da ditadura. Nas suas linhas e entrelinhas escondiam intenções da caserna — nos anos 1970 e 1980, poderiam indicar maior ou menor chance de abertura; em 2011 e 2012 apontavam a chance de quebra da institucionalidade.

Nós, jornalistas, tivemos que retomar o hábito de decorar nomes dos comandantes das três forças,  a prestar atenção nos movimentos de nomeação deste ou daquele oficial-general: seria ele um golpista ou alguém comprometido com a democracia? 

Em nossas rondas diárias em busca de notícias, passamos a incluir conversas com generais, almirantes e brigadeiros, a perguntar se havia o risco de golpe, de nova ditadura — um tipo de questão redundante. Se nos sentimos obrigados a fazer esse tipo de pergunta é porque há mesmo o risco de virada de mesa.

Para muitos brasileiros, falar em ditadura é algo tão distante quanto citar o inferno que era conviver com uma inflação de 2.500% ao ano (houve isso, em 1993). Mas quem era obrigado a cobrir solenidades militares e a correr pro supermercado no dia em que recebia salário não esquece. Se você, leitor, tiver menos de 40 anos, acredite, era terrível.

O mandato de Bolsonaro nos reaproximou do risco da ditadura, mostrou que a sociedade brasileira ainda tem presente a memória do autoritarismo e do arbítrio. Pior, revelou que muita gente sonha com a volta da opressão, da tortura, dos desaparecimentos e da censura. Ao mandar os líderes golpistas para a cadeia, o STF nos deu mais uma chance para banirmos esses bichos-papões,para extirparmos qualquer tipo de normalização da ditadura.