A ameaça de uso de força militar contra o Brasil explicitada pela porta-voz da Casa Branca pode ser equiparada, pelo ridículo, à Guerra da Lagosta, ensaiada entre França e Brasil no início dos anos 1960.
É ainda mais patética: a briga dos franceses pelo direito de seus barcos capturarem o crustáceo em nossos mares tinha, pelo menos, um motivo concreto.
Já ameaça norte-americana é baseada numa falsidade, numa suposta inexistência de democracia em nosso país — pior, uma mentira baseada numa hipocrisia, uma suposta luta pela liberdade de expressão, que não existiria no Brasil. Uma cascata alimentada pela família Bolsonaro que, mais uma vez, coloca seus interesses acima dos nacionais. Jair Bolsonaro virou a lagosta da vez.
As medidas tomadas pelo governo norte-americano contra universidades que foram palco de manifestações contra o genocídio promovido por Israel em Gaza e a ocupação da área central de Los Angeles por tropas federais são exemplos da seletividade trumpista nessa história de defesa da liberdade de expressão, só é livre de verdade quem concorda com ele.
Uma lógica adotada de maneira irrestrita pela extrema direita brasileira, que defende seu direito de mentir impunemente, mas não vacila em atacar a liberdade de expressão artística e cultural, que volta e meia promove caça às bruxas que, segundo eles, moram em livros adotados ou recomendados por escolas em todo o país.
Ao longo do mandato presidencial anteriores, bolsonaristas não se cansaram de difamar e ameaçar políticos, jornalistas e internautas de um modo geral que ousaram publicar informações ou opiniões que contrariassem seus valores.
Os mesmos que hoje falam em limitação do direito de expressão, que indicam a existência de uma ditadura no Brasil são os mesmos que elogiam a ditadura que, ao longo de 21 anos, cassou mandatos de políticos, proibiu livros, censurou peças de teatro, filmes e novelas.
Poder que chegou ao ponto de torturar e matar brasileiros que cometeram o crime de discordar dos atos implantados pelos militares que haviam tomado o poder. Os que reclamam de suposta censura hoje exaltam o AI-5, instrumento que radicalizou a ditadura implantada em 1964.
A concepção de liberdade de trumpistas e bolsonaristas é como a visão de democracia explicitada pelo então presidente Ernesto Geisel, o quarto da ditadura. Ele disse a um repórter que o Brasil vivia uma "democracia relativa".
(Ao ser preso em 1968, logo após a edição do AI-5, o advogado Sobral Pinto foi mais explícito e fiel ao seu estilo, nada hipócrita. Conservador que defendeu comunistas como Luiz Carlos Prestes, Sobral ouviu do coronel que o prendia uma justificativa para sua detenção, já que no país vigia uma "democracia à brasileira". Como resposta, ouviu que sabia da existência de peru à brasileira, não de democracia.)
Numa democracia, liberdade pressupõe responsabilidade, todos somos livres para expressar nossas opiniões, mas nenhum de nós é livre para para injuriar, caluniar e difamar — crimes contra a honra previstos pelo Código Penal. Temos liberdade para mentir, mas, neste caso, temos que suportar as consequências do nosso gesto.
Da mesma forma que, em tese, podemos agredir ou mesmo matar alguém. Quase todos temos acesso a instrumentos que permitem o cometimento desses crimes, mas o acesso a armas e a venenos não nos dá a autorização social para cometer homicídios, tendemos a ser condenados e presos caso façamos algo assim.
Ao aceitar como verdadeiras as mentirosas alegações de limitação de liberdade pregadas por blogueiros bolsonaristas, Trump apenas abona a prática de proliferação de fake news que tanto pratica. Administrador da maior força militar do planeta, pode se dar ao luxo de dispensar condenações morais para nos atacar. Piores são os brasileiros que o incentivam o presidente norte-americano a invadir nossas praias.