A campanha pela anistia de responsáveis por uma tentativa de golpe documentada, com firma reconhecida em cartório, remete ao célebre projeto de Constituição sugerido por Capistrano de Abreu (1853-1927), historiador cearense: "Art. 1.º - Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. Art. 2.º - Revogam-se as disposições em contrário".
O que está em jogo não é apenas a liberdade desses ou daqueles sujeitos, mas a existência ou não de um país e de suas leis. Ou o Brasil pune de maneira exemplar os responsáveis pelo maior dos crimes institucionais ou desiste de vez de tentar ser o que prega a Constituição, um Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos, entre outros, a soberania, a cidadania e o pluralismo político.
Os argumentos apresentados pelas defesas dos réus convergem para um ponto: houve sim uma tentativa de quebra da democracia. Cada advogado, porém, tratou de afastar de seu cliente o cálice do veneno golpista. Houve quem dissesse que houve apenas conjecturas, devaneios, elaboração de cenários, uma conversa de bar. Como se fosse razoável que algumas das mais altas autoridades do país, entre elas, o presidente da República, imaginassem maneiras de desrespeitar o que havia sido decidido pela maioria da população.
Há questões que sequer podem ser discutidas, é como se encontrássemos com lideranças políticas minutas de projetos que discutissem a reincorporação do Brasil a Portugal ou a reintrodução do regime escravocrata. Fora que Jair Bolsonaro, ao longo de seu mandato, acenou com a possibilidade de um golpe em reiteradas e frequentes ocasiões.
A defesa do general Paulo Sérgio Nogueira apontou o dedo para Bolsonaro e tentou negar o óbvio: ao longo de 2022, o então ministro da Defesa encampou os ataques de seu chefe contra as urnas eletrônicas, fez de seu gabinete uma trincheira de onde disparou diversos tiros contra um inimigo que ele sabia ser inexistente. Tudo para tumultuar o processo eleitoral.
Os comandantes do Exército e da Aeronáutica tiveram um papel fundamental ao negar apoio ao golpe, mas apenas cumpriram seu dever. Mais: ao lado do comandante da Marinha, este, um dos réus, produziram diversas notas oficiais que flertavam com a possibilidade de ruptura institucional, e isso não pode ser esquecido.
A condenação e prisão dos culpados é fundamental para que o país tome jeito, o que inclui uma redefinição definitiva do papel das Forças Armadas que, desde o golpe que instituiu a República, teimam em achar que são uma espécie de consciência moral da nação, um país dentro do próprio país.
Eles são funcionários públicos fardados que recebem dos civis o direito de usar armas compradas com dinheiro público e que só podem ser usadas para a defesa nacional. A presença de militares, entre eles, oficiais generais, no banco dos réus é um marco na história do Brasil, algo que não pode ser descartado por uma anistia oportunista.
Anistias ocorrem em momentos de retomada de uma normalidade institucional. São momentos de reabilitação de setores que haviam sido oprimidos por um poder excepcional e arbitrário, foi assim em 1979 (ainda que a ditadura tenha aproveitado a deixa para livrar a cara de torturadores e assassinos que agiram em nome do Estado).
Não se pode anistiar quem exercia o poder no momento do cometimento dos atos. O Brasil, apesar das constantes ameaças de Bolsonaro, não passava por um momento de exceção, desfrutava de uma normalidade democrática, não havia qualquer justificativa para a busca de saídas não constitucionais.
Com medo de perder a eleição, Bolsonaro e auxiliares tentaram melar o jogo, invadir o campo, dar cartão vermelho para a democracia. Todos precisam ser banidos do estádio, têm que ser punidos, devem receber condenações que sirvam de exemplo e de referencial — Golpe, nunca mais. Que, enfim, tenhamos vergonha na cara e revoguemos as disposições em contrário.