A grande sacada do procurador-geral da República, Paulo Gonet, no julgamento que começou ontem foi dispensar a camisa 9 normalmente associada aos integrantes do Ministério Público para envergar a 8. Trocou o figurino do centroavante rompedor que investe contra bola, goleiro, zagueiros e canelas pelo do meia que, à frente da defesa e atrás do ataque, é muitas vezes o responsável pela armação do time.
Pela segunda vez em dois dias me vejo obrigado a citar Didi, o maior de todos os 8. Quando, na final da Copa de 1958, contra a Suécia, o Brasil tomou o primeiro gol, o craque do Botafogo (que no torneio usava a 6) pegou a bola, colocou-a debaixo do braço e foi com ela caminhando em direção ao círculo central. De mãos dadas com a namorada que sabia ser fiel e apaixonada, ele ignorou o desespero de Zagallo, ansioso pelo reinício da partida.
Ontem, Gonet fez como Didi. Diante de toda a turbulência produzida nas últimas semanas por Jair Bolsonaro & Filhos, que chegaram ao ponto de pedir uma intervenção do Trump-Fifa numa disputa brasileira, o PGR resolveu cadenciar o jogo, ditar o ritmo da partida. Nada de dar botinadas, de puxar a camisa do zagueiro, de provocá-lo.
Como a tranquilidade de quem chupa laranja e um certo ar de enfado, distribuiu passes estratégicos e precisos, daqueles que desmontam a defesa, destroem linhas de impedimento, humilham os defensores grandalhões que entraram em campo com o espírito do finado Moisés (1948-2008).
Ex-jogador de vários clubes, entre eles Vasco, Corinthians e Bangu, e conhecido pela alcunha de "Xerife", dizia zagueiro que se prezava jamais poderia ganhar o Belford Duarte, prêmio então concedido ao jogador que ficava dez anos sem ser expulso de campo.
O time de amarelo entrou no tapetão do Supremo Tribunal Federal com o espírito que caracteriza sua atuação desde os primeiros movimentos golpistas que redundaram na intentona de 8 de Janeiro. Foi disposto a, mais uma vez, botar pra quebrar os fatos, entrar de sola nos documentos, distribuir carrinhos por trás nos depoimentos que comprovam a articulação que visava impor uma nova ditadura ao país.
Até pelo fato de saber que o juiz do clássico tem o espírito do velho Mário Vianna (que foi expulso da Fifa por denunciar corrupção na entidade), Gonet pôde se concentrar no jogo em si. E fez o óbvio: tratou de, maneira didática, enumerar e encadear todos os fatos que mostram a estratégia golpista.
Mais importante: demonstrou que, no jogo da quebra da democracia, a peleja começa nos bastidores. O time da situação, dono da casa, fez de tudo para sabotar o adversário: impediu que sua torcida chegasse ao estádio, distribuiu armas de fogo para os integrantes de suas organizadas, cortou a água e a luz do seu vestiário e entupiu os vasos sanitários, jogou laxante na água a ser bebida. Ainda tentou desacreditar o placar eletrônico, queria que fossem validados apenas os gols que seus próprios fiscais escreveriam na súmula.
O PRG mostrou que, na trama golpista, nada aconteceu por acaso. O esquema destinado a manter Bolsolnaro no poder foi muito bem planejado. Enquanto o então presidente tratava de desmoralizar instituições, de aparelhar o Estado e de instigar seus correligionários, militares atuavam para conquistar novos adeptos fardados, respaldavam as insinuações mentirosas sobre o processo eleitoral, divulgavam notas oficiais em que relativizavam o compromisso com a democracia e estimulavam a ocupação de áreas de segurança, que ficam em frente a quartéis.
O pessoal herdeiro dos porões fazia atentados em Brasília e preparava uma explosão terrorista no aeroporto da capital, tragédia que por sorte não se consumou. O ato final coube à tigrada dos kid pretos que, financiados por um grupo de empresários que desde sempre faz gol contra, coordenou o ataque ao centro do poder.
Gonet sequer precisou levantar a voz para narrar e costurarfatos. Como Didi em Estocolmo, botou a bola no chão e tratou de reiniciar o jogo, de armar a goleada e a conquista; no caso, a reafirmação da democracia.