Meu lugar

Esse coração suburbano ficou impactado pela beleza de letra e música, derrubado ao ouvir "O meu lugar/ É cercado de luta e suor/ Esperança num mundo melhor/ E cerveja pra comemorar".

Por Fernando Molica

Cantor e compositor morreu na última sexta-feira

Demorei a prestar atenção na letra do belíssimo samba "Meu lugar", composto por Arlindo Cruz e Mauro Diniz. Já o tinha ouvido outras vezes, em confusas rodas de samba, no meio de muitas cervejas e conversas. Daí que nunca tinha prestado muita atenção nos seus versos, ficava ali, só berrando "Madureiraaaaaaaaaaaa!".

Só que, faz tempo, numa festa do Império Serrano, no Teatro Rival, Arlindo, um dos convidados, decidiu cantá-lo. Admito: esse coração suburbano ficou impactado pela beleza de letra e música, derrubado ao ouvir "O meu lugar/ É cercado de luta e suor/ Esperança num mundo melhor/ E cerveja pra comemorar".

É tudo muito simples, não há qualquer grandiloquência, arroubo, drible de efeito. Mas como é bonita essa crônica, que tem jeito de tarde quente de sol chapado que se reflete no quarador, cheiro de pão trazido pelo padeiro em cesto de vime colocado à frente da bicicleta, movimento de garotos correndo descalços atrás de uma bola em rua de paralelepípedos, delicadeza de pipa que baila no céu, carinho de avó sentada à porta de casa, tomando a fresca no fim da tarde.

"Meu lugar" recupera um subúrbio eterno. É samba-enredo que permite a evolução de infinitas alas, que lembram a menina gostosona que morava na outra rua, o sapateiro português da esquina, a feira livre, o Colégio Guarani, a passarela sobre a estação, a vila de dezoito casas, a alegria de ganhar bicicleta nova no Natal, os carnavais no River, os blocos de sujo, o santo que baixa na vizinha a cada virada de ano.

Samba que embala carros alegóricos, com imagens de meus avós, minhas tias, meus tios, primos, pais, meu irmão. Um dos carros, eu vi!, trazia minha própria imagem. Arlindo, hoje tão abalado pelo AVC, cantava "Madureiraaaaaaaaaaaaaa!", e eu, com os olhos suburbanamente molhados, ouvia "Piedadeeeeeeeeeeeeeeee!".

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Esta crônica, que publico hoje como homenagem ao grande Arlindo Cruz, sambista mais que perfeito que morreu na sexta-feira, faz parte do meu livro "Meninos que brincaram na Lua" (Editora Tinta Negra), que será lançado nesta semana.