A carnavalesca que traduziu a cidade

A União da Ilha de Maria Augusta mostrou que a vida não estava apenas no alto dos carros alegóricos que escondiam gente bamba

Por Fernando Molica

Maria Augusta, que mudou os desfiles de Carnaval

Reportagens sobre a morte da carnavalesca Maria Augusta (1942-2025) ressaltaram sua capacidade de misturar e ressaltar cores.

Concordo, mas impactado pelos desfiles que ela criou na União da Ilha, sempre a vi como uma artista que, nas escolas de samba, traduzia um universo que remetia aos nossos grandes cronistas, capazes de discorrer sobre assuntos que fogem à seriedade e à sisudez do noticiário.

Maria Augusta, que morreu na sexta-feira passada, criou um jeito de fazer Carnaval. Seus dois grandes desfiles na Ilha — "Domingo" (1977) e o "O amanhã" (1978) — apresentaram releituras de um Rio que tanto amamos.

Desfiles que enfatizavam a elegância, a descontração e o charme do cotidiano carioca: tinham cheiro de churrasquinho na calçada, ressaltavam alegria do Maracanã, dançavam com as pipas, destacavam a beleza das praias e desenho das montanhas, marcavam o ritmo do doce balanço a caminho do mar. Os sambas que os embalaram viraram hinos informais de nossa cidade.

Na Avenida, os anos 1970 foram, principalmente, marcados pela explosão da Beija-Flor de Joãosinho Trinta e Laíla, como ela, egressos da grande e revolucionária tradição salgueirense. Com o enredo "Sonhar com rei dá Leão", a escola de Nilópolis, em 1976, colocou em outros patamares quesitos como enredo, alegorias, fantasias — e não era luxo só.

A partir daí, praticamente todas as escolas tentaram seguir os passos da nova rainha da passarela, e tome de plumas, de esbanjamento visual, de uso da cor branca, de releitura festiva da herança negra.

Um deslumbramento visual e temático que deixou atônito o mundo do Carnaval e abriu caminho para outras escolas que não faziam parte da elite momesca, como Mocidade e Imperatriz.

E em meio a essa disputa, a União da Ilha de Maria Augusta mostrou que a vida não estava apenas no alto dos carros alegóricos que escondiam gente bamba, havia espaço também para uma festa de fantasias mais simples, despojadas, para um desfile que nos reiterava a alegria de viver no Rio colorido pelo sol.

Da janela do aparelho de TV, vi nascer um novo jeito de fazer Carnaval, e tome de bermudas, biquínis e pranchas de surfe. No ano seguinte veio outra surpresa, nem era preciso consultarmos o realejo para saber que seríamos felizes.

Maria Augusta está para o desfile como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Antônio Maria estão para a literatura; ela relia e reinterpretava a vida do dia a dia, revelava belezas nem tão evidentes.

Ela não tinha a pretensão de escrever no asfalto um grande e volumoso romance, sabia que seria muito difícil ganhar de escolas bem mais ricas, queria nos levar para o terreiro para sambar com histórias boas, bonitas e baratas. Conhecedora de todos os detalhes do ofício, Maria Augusta foi umas das reinventoras de nossa maior festa, e isso não é pouco.