Músicas de Poze do Rodo revelam cotidiano violento

As letras do MC são como manifestos que homenageiam os "soldado preparado, os menor descontrolado": os erros do seu português ruim não são detalhes, mas gigantescas exclamações.

Por Fernando Molica

MC Poze do Rodo está no radar da Alerj

Uma olhada em letras de músicas do MC Poze do Rodo, preso ontem no Rio, até justifica a acusação de apologia ao crime, mas seus versos, mais que tudo, revelam o buraco em que nos metemos. Ressaltam uma naturalização da vida bandida, lugar de refúgio e de ataque de tantos e tantos jovens. 

A eventual condenação de Poze não acabará com uma questão que vai muito além dele. Seus funks —  duros, violentos, agressivos, com louvações a uma organização criminosa — fazem sentido para muita gente, adolescentes que se identificam com a vida que ele narra.

Não dá pra querer que pessoas nascidas e criadas em favelas e periferias tão violentas façam canções sobre barquinhos, cantinhos, violão, sol, sal e sul. O nome artístico do MC — batizado como Marlon Brandon Coelho Couto Silva — faz referência à sua comunidade de origem, a favela do Rodo, em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio.

Letras de Poze que tendem a ser usadas como provas contra ele deveriam servir também como um guia para a compreensão de nosso país. Aos 26 anos, ele não é um ET, um alienígena que, em determinado momento, saltou de um disco voador no Rio e decidiu fazer e interpretar canções que exaltam traficantes, armas, disputas territoriais e rivalidades.

São como manifestos que homenageiam os "soldado preparado, os menor descontrolado": os erros do seu português ruim não são detalhes, mas gigantescas exclamações. Seu canto, é preciso admitir, representa frustrações, anseios, ódios e visões de mundo de muita gente — e isso não significa concordar com suas pregações.

Não se trata de defendê-lo, cabe à polícia investigá-lo e, à Justiça, avaliar sua inocência ou culpa. Mas seria uma burrice — mais uma — não perceber que suas músicas ajudam a entender uma sociedade construída na base do racismo, da discriminação, da desigualdade de renda e de oportunidades.

A popularidade de Poze do Rodo — ele tem 15 milhões de seguidores no Instagram — é sintoma do descompasso de um país que insiste em viver numa espécie de ficção: há os que querem manter tudo como está, os que advogam uma redistribuição de riquezas lenta, segura e gradual e os que creem na salvação e prosperidade divinas.

As letras de Poze traduzem impasses de grande parte de nossa juventude, adolescentes que parecem convencidos da inutilidade dos caminhos formais que historicamente lhes são oferecidos, pequenas e esburacadas trilhas materializadas em escolas precárias, preconceito, baixos salários, falta de oportunidades e exaltação de uma suposta meritocracia.

Eles sabem que no fim dessas ruelas haverá destinos pouco atraentes, como o balcão de uma farmácia em escala 6 X 1 ou a moto para entrega de comida.  São brasileiros que se reconhecem em funks limitados até geograficamente, quase sempre relatam os horizontes restritos de favelas.

Para alívio geral da nação, a imensa maioria dos que consomem as criações de Poze do Rodo não pratica nada do que é narrado nas letras. Mas são pessoas que nelas reconhecem um cotidiano de quem vive em áreas dominadas pelo grupo A ou pelo B. Que são obrigadas a adotar até nas roupas um código cromático compatível com a simbologia das organizações criminosas — um domínio que só existe graças à parceria de agentes do Estado. 

Em seus funks, Poze volta e meia dá protagonismo a garotos — "os menor" —, guris que, nas músicas, acabam seduzidos pelo atalho da vida criminosa: condenados desde o nascimento ao fundo do palco ou à limpeza de banheiros e coxias dos teatros, sabem, para citar Chico Buarque, que só haveria um jeito de chegarem lá, na frente do palco.

Por mais torto que seja, o grito de Poze do Rodo precisa ser ouvido, nos ajuda a entender as consequências de uma exclusão cultivada ao longo de 500 anos. Como naquela história em que oficiais nazistas, diante de "Guernica", perguntaram ao autor, Pablo Picasso, se ele é que tinha feito o quadro que retratava o massacre de uma cidade durante a Guerra Civil espanhola: "Não, foram vocês", respondeu.