O general e as curvas nas linhas retas da Constituição
Depoimento de Freire Gomes, porém, confirmou a minuta golpista e a estratégia para justificar o golpe
Em seu depoimento, o general Marco Antônio Freire Gomes afirmou não ter causado "espécie" o fato de o então presidente Jair Bolsonaro ter apresentado aos comandantes militares texto que previa decretação do Estado de Defesa no Tribunal Superior Eleitoral e a implantação de mecanismos que permitiriam anular a eleição presidencial.
No Supremo Tribunal Federal, o ex-comandante do Exército disse que a minuta golpista foi recebida com tranqulidade porque estava embasada em "aspectos jurídicos, dentro da Constituição". Mas como achar normal que o presidente da República, derrotado na tentativa de reeleição, reúna os chefes militares e apresente uma evidente proposta de virada de mesa?
A Constituição é muito clara ao definir as possibilidades de decretação do Estado de Defesa. A medida só pode ocorrer "para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza".
Nada disso havia naquele 7 de dezembro de 2022, quando Bolsonaro se reuniu com os comandantes militares no Palácio da Alvorada. A única tentativa de bagunçar o coreto institucional partia dos próprios bolsonaristas que fechavam estradas e — com anuência e estímulo de comandantes militares — promoviam manifestações de viés golpista em áreas de segurança, diante de quartéis.
A minuta é um contrassenso: o presidente buscava uma medida excepcional, com suspensão de garantias constitucionais, para conter a confusão provocada por seus próprios aliados. É como se um juiz de futebol declarasse vencedor um time que, inconformado com a derrota, provocasse um caos no campo de jogo, agredisse os adversários e estimulasse sua torcida a trucidar a da outra equipe.
O fato de os estados de Defesa e de Sítio serem previstos pela Constituição não quer dizer que possam ser acionados de uma maneira que contrarie a Constituição. Um árbitro não pode sacar cartões amarelos e vermelhos — previstos nas regras do futebol — para punir sem motivos.
Não dá pra se falar em embasamento jurídico que justificasse a redação de um montrengo como a tal minuta. Também é absurdo falar em análise de cenários, de possibilidades. Não se tratava de um daqueles jogos estratégicos utilizados em cursos militares para simular o ataque do exército A contra o país B. O que havia era um presidente da República que, inconformado pela derrota, tentava arregimentar as forças armadas para a derrubada da democracia.
Ainda que tenta procurado justificar o injustificável, Freire Gomes, porém, contribuiu para a elucidação da trama golpista ao referendar a existência da minuta, ao confirmar que o documento foi apresentado a ele e aos demais comandantes militares.
Foi importante também ter confirmado que, dias depois, diante da insistência de Bolsonaro, ele tenha dito ao presidente que ele seria "enquadrado juridicamente" caso tentasse implantar uma medida ilegal. E ressaltado que o Exército não iria extrapolar sua competência constitucional". Deu um cartão amarelo para o chefe.
Apesar de, no STF, ter admitido a viabilidade de criação de curvas nas retas que demarcam as quatro linhas da Constituição, Freire Gomes, em seu depoimento, comprovou o que se sabia: as tentativas de se provocar um caos na sociedade e que culminaram com o 8 de Janeiro não foram gratuitas.
Os atos estavam ligados à perspectiva de criação de dificuldades institucionais que seriam debeladas por uma intervenção militar — um Estado de Defesa sob Bolsonaro e a decretação de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) já por seu sucessor. Neste caso, havia a expectativa de, colocadas legalmente na rua, tropas se uniriam aos golpistas que depredaram palácios e instituições para consolidar uma nova quartelada. Lula não caiu na armadilha, não convocou os fardados e conseguiu sufocar a última aposta golpista.